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Colômbia também existe em seu labirinto, como diria Octávio Paz. Quem
desembarca na noite de...Rossini Corrêa
Na Praça Bolivar, no Parque Santander, na Onda Rosa, na Praça de Touros, no Bairro da Candelária ou na Quinta de Bolivar, o visitante testemunha os efeitos do encontro do tempo e do espaço culturais, em uma síntese circulante como o sangue, presente na calçada, no sobrado, no balcão, nos rosais e, sobretudo, na gente que passa, cuja alma tem o ritmo das trovas, das guitarras e da rumba. Em meio ao mágico cenário, como um tropeço na realidade, haverá pedintes de prata, de todos os matizes étnicos, sexuais e cronológicos, a disputar a atenção dos transeuntes com os vendedores de quase tudo e de quase nada.
A Colômbia pertence à muito desigual América do Sul. A metáfora mais completa do país encontra-se, porém, entre Zipaquirá e Chia. Ali, a Catedral de La Sal, com a sagrada ascensão de que os colombianos necessitam e a que há muito, ainda que sem sucesso, aspiram. Aqui, Andrés Carne de Res, o Restaurante Atípico situado na Vereda La Luna, onde o ato de comer está decorado pela estatuária barroca, com a sua sugestão de vida e de morte, que excita e alegra uma sociedade que jamais deixou de ser autofágica.
A Colômbia não se decifra e se devora desde os tempos da empresa espanhola colonial de saque. Se comparada com o Brasil, no passado como no presente, registra a nação andina determinados e positivos resultados. No passado, o obscurantismo português não contaminou o sentimento metropolitano espanhol, relativo ao funcionar de seminários maiores, de onde decorreram universidades multisseculares, como a do Rosário e a Javeriana. E, no presente, o cotidiano do Rio de Janeiro, com os enclaves urbanos dos morros e os constantes tiroteios entre as quadrilhas dos narcotraficantes, é infinitamente mais violento do que toda a savana de Bogotá e a fronteira da Cundinamarca, o único espaço onde o débil Estado Nacional, de maneira efetiva, estabeleceu a sua hierarquia e a sua autoridade.
Uma análise comparativa de fundo histórico e de sentido estrutural revelará, entretanto, uma distinção favorável ao Brasil. É a de que a lei do desenvolvimento desigual e combinado, no país tupi e guarani, desigualou, mas combinou as diferentes regiões do Brasis, no plural, articulando-as, contudo, por meio dos transportes, das comunicações e, sobretudo, da divisão do trabalho da unidade brasileira. Vagarosa, porém real, a marcha nacional se efetivou do litoral para o interior e, neste, na difícil conquista do oeste, retratada quer por Cassiano Ricardo, quer por Sérgio Buarque de Holanda. E como o processo histórico foi tornando a dualidade básica tupiniquim relativa e funcional, a conquista do extremo norte completou a saga unificadora no século XX, desdobrada do centro-oeste, a vincular Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek: o primeiro, com a Colônia Agrícola de Ceres; o segundo, com a BR 364.
Bogotá nunca foi o que Brasília imaginou ser. Na Colômbia, de certa maneira, jamais houve dualidade. A discussão, ali, é referente à angustiante dúvida histórica: constitui o país uma tetrarquia ou uma septualidade? É um dilema pulsante responder quantas são as Colômbias, onde o sentido de autarquia cristalizou diferentes sociedades no Caribe, no Pacífico, no Atlântico, na Amazônia, na Savana e, para ser econômico, nas Terras Cafeicultoras. Compreende-se, desde já, que a lei mencionada do desenvolvimento muito desigualou e pouco combinou as múltiplas regiões das terras granadinas, no plural, desarticulando-as, ainda mais, por meio de uma intervenção sociopolítica absoluta, autárquica e disfuncional, que tem depredado as possibilidades históricas de unificação da Colômbia, ancorada, agora, em próspera e rentável atividade econômica integrante do produto bruto da criminalidade: o narcotráfico. Nada autoriza, todavia, o manuseio das fórmulas simplórias que mercadejam as imagens falsas do conflito colombiano, como a expressão de uma decomposição geral, cuja polaridade obedecesse ao seguinte desenho:
NARCOESTADO X NARCOGUERRILHA
O fenômeno é muito mais complexo e resulta de profundas raízes históricas, as quais remontam, no mínimo, às lutas e ao processo de emancipação nacional. Havia que decidir entre monarquia ou república, e poderosa era a influente ressonância da Independência dos Estados Unidos, definida por, pelo menos, três apelos simbólicos:
1º - A Declaração da Independência, escrita por Thomas Jefferson, a qual, mercê de Deus, elegeu a vida, a liberdade e a felicidade os três direitos inalienáveis dos povos, competindo-lhes alterar as formas de governo destrutivas da legislação natural em questão. De onde a solene Declaração do Congresso Geral dos Representantes dos Estados Unidos: “estas colônias são e de direito têm de ser Estados Livres e independentes; que estão desoneradas de qualquer vassalagem para a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar totalmente dissolvido.”
2º - A Constituição dos Estados Unidos da América, consequência da Convenção de 1787, cujo propósito foi a criação do sistema federal de governo, obra única, e das mais expressivas de todos os tempos, de engenharia constitucional. Ao Norte, o Preâmbulo do Diploma Legal indicou a Justiça, a Segurança e a Liberdade como os objetos de desejo coletivo a ser conquistados, cumprida uma preliminar de mérito “formar uma União mais perfeita”. De onde decorreu um equilíbrio insuscetível de transposição nacional automática, radicado em matrizes históricas e sociológicas singulares: União Federal com poderes reais e preservação das autonomias dos Estados–membro, em uma operacional balança de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
3º - E, por fim, a solução republicana e presidencialista, estabelecida pelo Artigo II, Seção I, 1, da Constituição dos Estados Unidos da América: “O Poder Executivo será investido em um Presidente dos Estados Unidos da América. Seu mandato será de quatro anos, e, juntamente com o Vice-Presidente, escolhido para igual período, será eleito pela a forma seguinte” etc. A configuração política e eleitoral estadunidense representou uma ruptura com a tradição firmada pela Revolução Gloriosa de 1688, cuja consagração formal resultou em um compromisso monárquico, um poder parlamentar e um constitucionalismo costumeiro, na urdidura da Common Law, filtrada do feudalismo para o capitalismo, pela racionalidade de Sir Edward Coke e pela crítica de Thomas Hobbes.
A solução conciliatória de 1688, na Inglaterra, distinta do radicalismo de 1640, de Oliver Cromwell, representou a convergência dos Lordes, do Rei, do Bispo, dos Comuns e dos Mercadores, bem como da Armada, em função de uma ameaça conjunta. Tratavase de um fantasma que começava a rondas a Europa – o do comunismo –, expresso na voz de Winstanley, a reverberar como os profetas:
- “É esta a servidão de que os pobres se queixam, que os seus irmãos os façam continuarem pobres numa terra onde há fartura para todos.”
- “A verdadeira liberdade reside na comunhão de espírito e na comunhão dos tesouros terrestres.”
- “A propriedade divide o mundo inteiro em partes e é a causa de todas as guerras e derramamento de sangue e contendas por todo o lado.”
- “Quando a terra voltar a ser um tesouro comum, como deve ser, então a animosidade existente em todos os países chegará ao seu termo.”
- “Onde quer que haja um povo que a participação comum dos meios de subsistência una na identidade, essa será a terra mais forte do mundo, porque todos serão como um só homem na defesa da sua herança.
Produtos de distintas matrizes históricas, os Estados Unidos, terra de pioneiros em busca de liberdade e de independência, promoveram uma ruptura com os modelos jurídico-políticos maternos, de onde decorreram, por haverem se tornado asfixiantes em sua opressão colonialista. A república federalista e presidencial, se foi uma arquitetura de reversão histórica, constituiu também a eficaz e específica maneira de proceder ao resguardo das autonomias (Estados), fundindo-as em um todo orgânico renovado e renovador (Unidos) jurídico e político. A influência próxima dos Estados Unidos escondia, porém, a luz e a sombra da remota Europa, a pesar de forma conflitante sobre o destino das vontades de autonomia da América do Sul.
Hobbes ou Locke? Montesquieu ou Rousseau? Estado absolutista ou monarquia constitucional? República democrática ou monarquia liberal? Estado unitário ou Estado federal? Autocracia conservadora ou liberalismo republicano? Democracia avançada ou liberalismo conservador? Liberalismo radical ou radicalismo conservador? O Sul da América também foi controverso teatro dos conflitos entre jacobinos e girondinos das elites caboclas, patronas de leituras diversas da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, capazes de tornar o espírito da Enciclopédia tanto um motor quanto um freio, sob o leito de Procusto das fórmulas jurídicas ou antijurídicas desconfortáveis perante o Novo Mundo, sequioso de antigos privilégios políticos.
A tendência histórica pode ser desenhada da seguinte maneira: se na noite colonial havia regressismo coincidente no discurso e na prática estabelecidos, na manhã nacional, divergente, houve progressismo no discurso e regressismo na prática dos novos senhores. Duas diferenças precisam ser sublinhadas: na América Espanhola a Independência foi conquistada nas sucessivas guerras de libertação, enquanto na América Portuguesa ela resultou de uma conciliação pelo alto, com um Orléans e Bragança transitando da colônia à nação e permanecendo no poder; na América Espanhola a descolonização foi republicana, separatista e de um profundo localismo, contrastando com a América Portuguesa, em que ela adquiriu a configuração tropical de monarquia, disposta a garantir a unidade de a nação com banhos de sangue festejados como pacificadores. Por hipótese, o colonialismo português foi mais delegado e a dominação espanhola mais concentrada. Em certo sentido, resistir ao centralismo, ali, representou uma atitude, ao passo que, aqui, estabelecê-lo configurou uma necessidade.
Explico-me. Na América Espanhola, uma vez conquistada a nação, a atitude autonomista reivindicada contra a tradição centralista advinda da colônia, constituiu uma reclamação de espaço de liberdade para a afirmação do tirano local, desejoso de ser monarca em sua própria república. Na América Portuguesa, a burocracia patrimonial rotativa identificou os senhores liberais e conservadores com o centralismo coroado do Estado Nacional, sob D. Pedro I, os regentes e D. Pedro II. Se na Colômbia cada partido – da tropa, liberal ou conservador –, pretendeu organizar à sua imagem e semelhança, de maneira excludente, o Estado, no Brasil todas as legendas, civis e/ou militares, primaram pela definição medular de agremiações do Estado, com projetos convergentes, para mais ou para menos, se menos houve, de tutela da sociedade. Quando se evidenciou um sentido autonomista viável no Brasil foi dentro da ordem vigente, na República dos coronéis da terra, em completa cumplicidade com o poder central. Eis a Política dos Governadores, advogada pelo Presidente Campos Salles.
Simon Bolívar, libertador da Nova Grande (1819), da Venezuela (1819-1821), do Equador (1821-1823), e do Peru (1821), bem como criador da Bolívia (1823-1826), incansável e inolvidável combatente, que foi uma das principais personalidades do IIº Milênio, já no “Manifesto de Cartagena”, ao defender um poder central viril, tocou as cordas do problema. Ei-lo, em 1812, na ressaca da derrota da Primeira República da Venezuela, sonhando com a retomada da Campaña Admirable:
- “Pero lo que debilitó más el Gobierno de Venezuela fue la forma federal que adoptó, seguiendo las máximas exageradas de los derechos del hombre, que autorizándolo para que se rija por si mismo, rompe verdadero estado de la Confederación. Cada provincia se gobernaba independientemente; y a ejemplo de éstas, cada ciudad pretendía iguales facultades, alegando la práctica de aquéllas, y la teoría de que todos los hombres y todos los pueblos gozan de la prerrogativa de instituir a su antoje el gobierno que les acomode.”
- “El sistema federal, bienque sea más perfecto y más capaz de proporcionar la felicidad humana en sociedad, es, no obstante, el más opuesto a los intereses de nuestros nacientes estados. Generalmente hablando, todavia nuestros conciudadanos no se hallan em aptitud de ejercer por sí mismos y ampliamente sus derechos; porque carecen de las virtudes políticas que caracterizan al verdadero republicano; virtudes que no se adquieren en los gobiernos absolutos, en donde se desconocen los derechos y los deberes del ciudadano.”
- Por otra parte, ¿qué país del mundo, por morigerado y republicano que sea, podrá, en medio de las facciones intestinas y de uma guerra exterior, regir-se por um gobierno tan complicado y débil como el federal? No es posible conservarlo en el tumulto de los combates y de los partidos. Es preciso que el Gobierno se identifique, por decirlo así, al carácter de las circunstancias, de los tiempos y de los hombres que lo rodean. Si éstos son prósperos y serenos, él debe ser dulce y protector; pero si son calamitosos y turbulentos, él debe mostrarse terrible y armarse de una firmeza igual a los peligros, sin atender a leyes, ni constituciones, ínterin no se restablece la felicidad y la paz.”
Transparece no discurso bolivariano a crítica à forma federal mitificada de gestão pública, pois, abraçada como valor puramente abstrato e tangente à necessária redução sociológica, frustraria a arquitetura jurídico-política da autêntica confederação. Caminhava-se para a força de unificação moderna e capitalista do Estado-Nação, e, nada obstante, no Novo Mundo, o ângulo de leitura dos direitos naturais e humanos inscritos na agenda histórica da burguesia era antigo e como que feudalitário, por decorrer da terra e de sua vontade de poder autárquica e localista. Com efeito, o sistema produtivo ao Sul da América estava perifericamente integrado à centralidade da expansão capitalista europeia, sem que existisse aqui uma classe burguesa correspondente àquela que, ali, produzia a tessitura do mundo moderno escudada na cidadania da ideologia liberal revolucionária.
Simón Bolívar que perdeu como político, mas venceu como estadista, era detentor da compreensão abstrata de que o sistema federal condensava uma forma jurídico-política mais completa e avançada. O Libertador, contudo, dispunha também da nítida percepção de que, na América do Sul, o federalismo puro seria câncer genético dos Estados Nascentes, como um prato de resistência servido em decomposição, ausentes as virtudes republicanas da consciência jurídica e da corresponsabilidade política. O resultado só poderia ser do poder local concentracionário, em detrimento do concurso em um projeto cívico de construção nacional. Na prática, não era câmbio do poder absoluto e centralista da Coroa de Espanha – a ser atomizado -, pelo absoluto poder localista dos senhores de terras, também distantes d regência das instituições jurídicas e políticas pela ética do consentimento da cidadania mobilizada, organizada e participativa?
A redução sociológica propugnava por Simón Bolívar consistia na afinidade do sistema de governo com os variáveis climas do tempo e do espírito da época, ou seja, com as mudanças do agir humano e das coordenadas do caráter das circunstâncias. Para Francisco de Paula Santander, ao contrário do General Abreu e Lima, seria preferível, como foi a 25 de setembro de 1828, uma tentativa de homicídio contra o Libertador, do que compreendê-lo. Reconhecia Simón Bolívar a necessidade de que a força do Estado fosse equivalente ao corrosivo poder dos perigos – a autofagia facciosa, o partidarismo violento e o absolutismo oligárquico –, suspendendo a legalidade constitucional provisoriamente, até que a normalidade política quedasse restabelecida, com o reinado da paz e a expectativa de felicidade.
Mais do que com a equivalência bolivariana, o Estado, que é força de intervenção na sociedade, trabalha é com a reivindicação da sua supremacia, escudada no monopólio legal dos meios de constrangimento, sobre as partes em conflito. Dir-se-ia, na atualidade, que o Libertador, pensando hegelianamente o processo histórico e político a partir da afirmação do Estado, sonhava disciplinar as efervescentes e autônomas forças sociais, que queriam, em si mesmas, constituir Estados, por meio do estado de defesa (restabelecimento pontual da paz e da autoridade públicas), que poderia transitar para o estado de sítio (suspensão geral e provisória das garantias constitucionais), dois institutos emergenciais e excepcionais consagrados pela teoria geral do direito público.
Quando Francisco Javier de Ustariz redigiu o “Proyecto de un Gobierno Provisorio para a Venezuela”, em 1813, a pedido do Libertador, que era General em Chefe do Exército, em torno do seu primado autocrático repousou os Poderes Legislativo (Artigo 1º), Executivo (Artigo 2º) e Judiciário (Artigo 3º) e, excetuada Caracas, a ser governada militarmente por Simón Bolívar (Artigo 7º), todas as províncias deveriam ter um governador militar e um governador político (Artigo 5º). Estes, em vez de serem senhores de terra, gado e gente, deveriam ser os provinciais Chefes da Fazenda Nacional, com direta subordinação ao Diretor e Superintendente Geral das Rendas do Estado (Artigo 6º), instalado ao centro, em Caracas. Tratava-se de quê? De constituir um César e buscar, por intermédio da via prussiana – pelo centro e pelo alto, ausente a segmentação plural, organizada e participativa da sociedade civil –, ordenar e dirigir a erupção vulcânica e predatória de certo espaço político, como que dividido entre:
PARTIDOS DA ANARQUIA X PARTIDOS DA ANARQUIA
Ora, toda a problemática, em gérmen, está contida na “Convocatória a las Provincias”, de 29 de julho de 1810, que a Junta de Santa Fé de Bogotá remeteu às províncias da Nova Granada, convidando-as a trocarem a sua autonomia atomizada por uma superior autonomia conjugada. Prosperava a tentação localista em Cartagena, Socorro, Pamplona e Caracas “y otras partes” – frisava o documento -, que “amenazaban una desmembración y la disolucioón política de este cuerpo social.” Santa Fé de Bogotá a todas as províncias concitava para a formação da Suprema Junta, cuja autonomia conjugada poderia vencer a recidiva colonialista da Espanha. E antecipava: “La capital se antecipa a precaver su desunión y la guerra civil. Pero se alguna de ellas intentare subtraerse de esta liga general, si no quisiere adherir a nuestras miras, tranquilos en la santidad de nuestros principios, firmes em nuestra resolución, la abandonaremos a su suerte, y las consecuencias de la desunión sólo serán imputables a quien la promovió.”
A Junta de Cartagena, admitindo somente um governo comprometido com as autonomias provinciais garantidas pelas estruturas federais, recusou o chamamento de Santa Fé de Bogotá. Centralista, Antonio Nariño publicou, a 19 de setembro de 1810, as “Consideraciones sobre los Inconvenientes de Alterar la Invocacion hecha por la Ciudad de Santa Fe”, muito embora reconhecesse que devia a Cartagena a vida e a liberdade, recentemente saído do cárcere político. Racionalista na defesa de uma síntese política viril para a experiência autonomista, o prócere neogranadino recordou que os franceses, consumada a revolução e destruída a monarquia, nunca repudiaram Paris; que as Cortes, sem desconfiança, aceitaram reunir-se em Madrid, passada a revolução de Espanha; e que, enfim, tanto os gregos quanto os romanos nunca cogitaram que as suas tribos e os seus comícios se efetivassem fora das fronteiras de Atenas e de Roma. Identificando o “santo amor de la patria” apenas no “bien común del reino entero”, argumentou com ênfase Antonio Nariño:
- “Los centros de las luces y del poder han estado siempre reunidos en toda la tierra, y nunca se ha creído que el influjo de las luces haya prejudicado ni a la forma de gobierno, ni al interés de las provincias.” - “¿Cuál será, pues, la razón para que sólo Santa Fe o la capital de este reino sea la excepción de esta regla general que tanto se amalgama con la razón? Yo la ignoro; pero permítaseme repetir que, aunque la hubiera, por ahora nada menos nos convenia que aplicarla”. - “Si el punto se ventila entre estas o las otras provincias, no hay tribunal que lo decida; y se no se ventila se dividirán, y aquí está el mal de los males.” - “Porque hay mucha diferencia entre uma propuesta y outra; la de Santa Fe disse: unámonos y juntos determinemos; la de Cartagena propone reglas, da formulas, y assigna lugar e número de vocales. Santa Fe aproxima los pueblos a sus derechos; Cartagena los restringe.”
Dissentidos em relação à organização de poderes, os neogranadinos não souberem o que fazer antes, durante e depois da prisão de Fernando VII, Rei da Espanha e das Índias, pelo Imperador da França. Um membro da Suprema Junta de Santa Fé buscou ordenar juridicamente os poderes governamentais. Sob inspiração francesa e norteamericana, Jorge Losano escreveu uma Constituição da Cundinamarca e Camilo Torres redigiu a Ata Confederativa Criadora das Províncias Unidas de la Nueva Granada, que a Cundinamarca, governada por Antonio Nariño - logo repugnou. Sem perceber que nem todos os generais se chamavam Simón Bolívar, mas consciente da pressão que as ondas centrais do mundo estabeleciam sobre os acontecimentos ao Sul da América, o Libertador apostou na possível solução dos labirínticos conflitos, sob a gramática binária ora exposta:
PARTIDO DA TROPA X PARTIDOS DA ANARQUIA OU 1 X N A
unidade venceria a fragmentação, pela superioridade da organização convergente sobre a desorganização divergente. Quem garantiu, porém, que o cidadão fardado dispunha de uma consciência jurídica e política mais avançada e comprometida do que a do subcidadão paisano? Dividir, para que as ondas centrais do mundo reinassem sobre o Sul da América, para a Europa hegemônica seria melhor. A França, de Napoleão Bonaparte, o homem que considerava a autonomia das colônias espanholas na ordem natural dos acontecimentos, realizou a sua política externa na Nova Granada e os capitalistas ingleses, com seu ímpeto globalizante, não concederam trégua ao Simón Bolívar homem de Estado, como o Livro de Despachos existente no Arquivo Nacional de Bogotá bem comprova. São pedidos e mais pedidos dos súditos da Coroa, cujas súplicas para a instalação de negócios, passando pelo comércio e pelos serviços, alcançavam as fábricas, a exemplo das de papel e de cerveja. A Inglaterra cobiçava o Rio da Prata. Registrada de maneira endógena e estimulada de forma exógena, consolidou-se a divisão em comento:
PARTIDOS DA ANARQUIA X PARTIDOS DA ANARQUIA E/OU DA TROPA E/OU DA TROPA OU N X N
As contendas entre bolivarianos, liberais, conservadores e reacionários conduziram à falta profunda de compreensão das circunstâncias envolventes. Ilustra a referida paixão cega a pluma de Luís Vargas Tejada, no Recuerdo Histórico, a imaginar, equivocado, que injúrias, calúnias e difamações tornariam opacos o agir histórico de Simón Bolívar e do General Abreu e Lima. A este, eleito o principal dos escritores de Cartagena, reunidos, ao que parece, no Jornal El Calamar, apostrofou como “el díscolo y malvado aventureiro Coronel Lima, sacerdote apóstata del Brasil.” O generoso General Abreu e Lima, que não foi sacerdote, e, sim, filho do Padre Roma, e que jamais renegou o Brasil, não poderia encontrar menos exato retratista, nisto e naquilo. Era, porém, o espírito reinante ao tempo em que os interesses ingleses, em integrada geopolítica, dividiam politicamente a Nova Granada e unificavam economicamente o Brasil, subtraindo um perigo e ampliando um mercado. Transitaram Bolívar do positivo para o negativo:
POSITIVO
“La Nueva Granada se unirá con Venezuela, si llegan a convenirse en formar uma república central, cuya capital sea Maracaibo, o uma nueva ciudad que, con el nombre de Las Casas, en honor de este héroe de la filantropía, se funde en los confines de ambos países, en el soberbio puerto de Bahía-Honda... Esta nación se llamaría Colombia como un tributo de justicia y gratitud al creador de nuestro hemisfério...”
NEGATIVO
“Todos me dicen que sirva a Colombia para cargarme de nuevas difamaciones; y, sin embargo, nadie se ocupa em defenderme sino por acidente y friamente... Aseguro a Ud. que estoy desesperado con el mando y que no sé que hacer con esta Colombia y con esta América tan desgraciada y tan trabajosa.” São pelo menos três os sentidos da palavra Colômbia, mas um só o desgosto do Libertador. Foi sinônimo do continente americano, nos discursos de Francisco de Miranda, designou o Estado formado pela união, em 1819, da Venezuela, da Presidência de Quito e da Nova Granada e nomina a República da Colômbia, antiga Nova Granada, desde a metade do século XIX, na lição de Augusto Mijares. A esperança e a frustração que povoaram a alma bolivariana, conhecedora da luz e da sombra, passaram pelo destino da Colômbia. Para cada desvario póstumo de um Karl Marx, encontrou Simón Bolívar o quente interesse de Lord Byron, Alexandre Humboldt e Benjamin Constant, chegando também a inspirar a novelística de Honoré de Balzac. Nada, quiçá, há de tê-lo compensado da dor de deixar sangrar a ferida aberta pelas trevas da decepção, com as quais escreveu a famosa carta ao General Juan José Flores:
- “Ud. sabe que yo he mandado veinte años, y de ellos no he sacado más que pocos resultados ciertos: 1º la América es ingobernable para nosotros; 2º el que sierve una revolución ara en el mar; 3º la única cosa que se puede hacer en América es emigrar; 4º este país caerá infaliblemente em manos de la multitud desenfrenada para después pasar a tiranuelos casi imperceptibles de todos colores e razas; 5º devorados por todos los crímenes y extinguidos por la ferocidad, los europeos no se dignarán conquistarnos; 6º se fuera posible que una parte del mundo volviera al caos primitivo, éste seria el último periodo de la América.” - “La primera revolución francesa hizo degollar las Antillas, y la segunda causará el mismo efecto en este vasto continente. La súbita reacción de la ideología exagerada va a llenarmos de cuantos males nos faltaban, o más bien los van a completar. ¡Ud. verá que todo el mundo va a entregarse al torrente de la demagogia, y desgraciados de los pueblos! ¡Y desgraciados de los gobiernos!”
A profética e dramática atualidade do pensamento bolivariano em seu ocaso pessimista, de revolucionário que arou no mar, ainda não foi desmentida pela história da América do Sul. Estabeleceram-se de maneira indesmentida os desgovernos autoritários e/ou populistas de todos os matizes, dos étnicos aos ideológicos, mais ou menos cúmplices da exploração da sua gente, condenada à barbárie primitiva, moderna e pós-moderna. Males, crimes e ferocidades revestidos pela esgarçada vestimenta ideológica de demagogos armados ou sorrateiros, capazes de desgraçar, uma vez nos governos, o destino dos povos, ou, contrários aos cavalgados povos, o caminho dos mais lídimos governos. Caos desenfreado que conduziu a Colômbia do século XIX aos funerais do bolivarismo e à realização de mais de cento e cinquenta guerras civis, entre os partidos da tropa, liberal e conservador. A média de 1,5 guerras civis ao ano foi possível, em função de que o partido da tropa não dispunha, em nível preponderante, do monopólio legal da força. Lei Magna houve, na Colômbia, autorizadora do armamentismo civil, de cujo negócio de venda e de compra se aproveitaram os partidos liberal e conservador para constituir guardas privadas, que os chefes políticos oligárquicos atiçavam com a virilidade dos canis raivosos.
A concentração da terra, a fraude crônica nas eleições e as guerras civis contínuas, questionadas, apenas pareceram aceitar as mudanças vindouras, eleito Enrique Olaya Herrera Presidente da República em fevereiro de 1930. A simples e numerosa organização da Guarda Cívica Liberal demonstra, porém, que os conservadores ameaçavam, recusando qualquer modelo de legalidade racional que alterasse as regras tradicionais, de onde derivavam ambos, liberais e conservadores. E a Força Pública, onde estava? Era a expressão da debilidade do Estado, frente aos blocos privados de poder, que o controlavam de forma corrosiva. A coalizão foi a saída, inaugurando um novo período de alternância, de cujo balanço dependiam, para o bem e para o mal, ora a manutenção da cumplicidade, ora o patrocínio da desagregação. Quase sempre o hobbesianismo, pacífico ou guerreiro, funcionou contra os interesses mais gerais da sociedade colombiana.
Urbanizando-se o país, as chagas da pobreza tornaram-se mais visíveis, crescendo as lutas sociais contra os privilégios da uma seletiva opulência. A guerra contra o Peru, em 1932, evidenciou uma emergência menos tímida da sociedade civil, na defesa patriótica do território nacional, por sobre as oscilações políticas das elites instáveis, a renovar casamentos e divórcios dia a dia, com recíproco desamor a valores e a princípios, que levaria mais tarde Julio César Turbay Ayala a uma convocatória geral: “precisamos reduzir a corrupção a suas justas proporções!” E como de justiça liberais e conservadores pouco ou nada entendiam, foi mais fácil ao tradicionalismo e a seus conflitos intestinos a travessia no deserto da Guerra dos Mil Dias, de que resultou a estimativa de 300.000 mortos, em uma Colômbia com 9 milhões de habitantes. No país em guerra de agora, há 40 milhões de habitantes, atingindo os óbitos a cifra de 60 mil, o que permite, trocados 3,33% por 0,15% da população, à lógica fria e absoluta do cálculo garantir, em sua perversão, que a Colômbia conhece um dos momentos mais pacíficos da sua história...
É a paz dos pântanos.
Não pode transparecer, todavia, que tudo foi Samper, Pastrana ou Uribe na gloriosa Nova Granada. Recorde-se a extraordinária personalidade política de Jorge Eliecer Gaitan, assassinado em 9 de abril de 1948, já candidato à Presidência da República por uma fileira avançada do partido liberal, do que decorreu “El Bogotazo”, uma das explosões de cólera coletiva mais contundentes registradas na crônica latino-americana. Jorge Gaitan a querer incorporar o povo excluído à política, sabendo do tamanho do desafio colombiano, onde foi mergulhado na necessidade, no obscurantismo e na inconsciência: “Nuestras masas en lo politico no tienen um sentido distinto del fonético. El viva al partido conservador o al partido liberal. Pero llame usted a gente de medianas nociones y trate de indagar la diferencia de ideas que para ellas signifique la diversidad del grito. No será mucho lo que haya de lograr. Y sin embargo, la obra tendrá de realizarse. Inútil pensar en la grandeza del país sin esa condición previa.”
Se ao povo político desencontram do seu destino, por que o fariam com Jorge Gaitan, ainda mais havendo o precedente de Simón Bolívar? Submerso em sangue apagou-se um sol. E de sangue prosseguiu a ser a história da Colômbia. Os braços armados dos partidos políticos, de tanto crescerem como tentáculos de polvos, ganharam autonomia. As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC –, nasceram como guarda privada dos liberais, por exemplo. Mudaram quimicamente quando da Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro que, muito jovem, mas já em treinamento, participou do “El Bogotazo”, tomando uma expressiva unidade militar de Santa Fé de Bogotá. Quanto ao Exército de Libertação Nacional – ELN –, de inspiração castrista tardia, é um grupo guerrilheiro distinto das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, com história acumulada e com poder de fogo menores. Combatendo as duas guerrilhas de esquerda existem as Forças Públicas – FP –, braços oficiais do Estado Nacional em crise permanente, e, como instrumentos autônomos, mas complementares, as Autodefesas Unidas da Colômbia – AUC –, que são oficiosas e financiadas socialmente pelas classes proprietárias.
Considerando-se o caráter relativo dos números desde já colocadas em discussão, os homens em armas na Nova Granada de agora, de forma redonda:
FP ................................................................................................................................................................................. 100.000 FARC ............................................................................................................................................................................. 50.000 ELN ................................................................................................................................................................................ 20.000 AUC ............................................................................................................................................................................... 10.000 TOTAL ........................................................................................................................................................................ 180.000
O potencial da violência é espantoso, de onde resultar, em uma sociedade com 40 milhões de habitantes, o convívio diuturno com o sequestro, o deslocamento forçado, o abandono de lares, a cobrança de resgate, a extorsão, a chacina, o narcotráfico e o terrorismo. Da população, 20% estão desempregados e, do território, 40% sob domínio das guerrilhas de esquerda e de direita. Os massacres de civis são constantes, consistindo a escalada da violação dos Direitos Humanos em humilhações, ataques, deslocamentos, desaparecimentos, mutilações e assassinatos, aos quais não estão imunes das crianças aos idosos, passando pelos jornalistas e indígenas e atingindo a elite política (prefeitos, deputados, governadores e até mesmo a candidata à Presidência da República pela legenda ambientalista, Senadora Ingrid Betancourt).
O crescimento a considerar é o dos paramilitares de direita, por suposto, narcotraficantes e sequestradores, acusações também dirigidas aos guerrilheiros de esquerda. A verdade é que o tráfico internacional de drogas, atividade ilícita de altíssima rentabilidade, conseguiu, em determinado tempo, o consentimento tácito das autoridades colombianas. Muitos dos setores econômicos avançados do país – bancos, fundos de investimentos, seguros, capitalização e corporações financeiras –, os segmentos industriais – alimentação, bebidas, tabaco, têxteis, confecções, produtos químicos e minerais – e os grupos agrários tradicionais - café, gado, algodão, cana-de-açúcar, banana , cacau, tabaco, cereais e oleaginosos –, são suspeitos de terem realizado a reprodução ampliada do seu capital, nunca no todo, sempre em parte, por meio do estabelecimento de conexão com o produto bruto da criminalidade, nos diferentes momentos do negócio da cocaína, jamais estranho às oligarquias e aos monopólios da Colômbia. De onde a cumplicidade do Estado, agora em retrocesso, facilitada pela pressão bilionária dos Estados Unidos.
A primeira eleição presidencial do século XXI, ao contrário do que pareceu, confirmou a tradição bipolar de conservadores (Álvaro Uribe Vélez) e de liberais (Horácio Serpa), retirando o espaço político dos detentores, talvez, das propostas mais consequentes para o país em crise. Uribe, o vencedor, de liberal dissidente passou a ser apoiado pelo conservadorismo mais radical, enquanto o cerco do silêncio foi calando Noemí Sanin (independente), Ingrid Betancourt (ambientalista) e Luís Garzón (convergência democrática). O cenário do exercício do poder é que será distinto, pois as eleições parlamentares precedentes revelaram o declínio dos políticos tradicionais e a ascensão daqueles suspeitos de haverem recebido o beneplácito autoritário das guerrilhas de direita e de esquerda, por suposto, narcotraficantes. Relatórios da Organização das Nações Unidas e do Departamento de Estado dos Estados Unidos, colocaram a Colômbia como o principal teatro do terrorismo no mundo, registrando, em 2001, o índice de 2800 sequestros e 178 ataques à infraestrutura energética, bem como o fechamento de estradas, a destruição de pontes e a explosão de minas e de bombas. São combatentes:
CENÁRIO I
FP X AUC X FARC X ELN
CENÁRIO II FP E AUC X ELN E FARC
CENÁRIO III
FP X FARC
CENÁRIO IV
EMERGÊNCIA PRÓ-ATIVA DA SOCIEDADE CIVIL
CENÁRIO V
PROFUNDA
REFORMA DO ESTADO E DAS FP DEPOSIÇÃO DAS ARMAS E ASSIMILAÇÃO
DAS FARC
CENÁRIO VI
INVESTIMENTO
MACIÇO EM UMA AGENDA PÓS-CONFLITO E DESENVOLVIMENTO DE UMA CULTURA DE PAZ PELA
SOCIEDADE CIVIL E PELO ESTADO
Quem diria que o M-19, grupo guerrilheiro de ações espetaculares, que furtou a espada de Simón Bolívar e um arsenal das Forças Públicas cavando um túnel no no perímetro urbano, depusesse as armas e passasse a estimular o advento legal de um pólo democrático na Colômbia? E aconteceu! Uribe, o novo Presidente da República, com certeza é o ator político para os cenários I, II, III, da guerra total, mas, desgraçadamente, não é o estadista dos cenários IV, V e VI, da liberdade com justiça, para a paz social. Ficou conhecido como “La Violencia”, o período de confronto hobbesiano de liberais e de conservadores, que demorou seis anos e foi sucedido, mais tarde, pela política de coalizão da Frente Nacional, alternando-se as duas legendas no poder, quaisquer que fossem os resultados das consultas populares. O cadáver de Jorge Gaitan, pretexto para “La Violencia”, merecia melhor destino. Não há mais espaço, na Colômbia, para o retorno elitista e antidemocrático ao duopólio político, alternando-se no poder as desgastadas legendas tradicionais. Oxigênio existe, porém, para a recorrência ampliada de “La Violencia”, com Álvaro Uribe Vélez a serviço dos Estados Unidos de George W. Bush.
Quando Don Antonio Nariño traduziu para o espanhol a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, ambicionou ancorar em valores as instituições colombianas. A extradição de neogranadinos – na prática, para os Estados Unidos –, permitida pela legislação penal nos termos fixados pela Constituição Política da Colômbia, no seu Artigo 35, representa um desrespeito a toda a ordem jurídica e um menoscabo à dignidade da sua soberania. Vão-se os miseráveis escravos do tráfico para as cadeias dos Estados Unidos, deixando mulher e filhos distantes, em um abandono maior ainda, que é um escárnio aos mais elementares Direitos Humanos. Se a prática neocolonial em questão desonra o sonho de Antonio Nariño, o discurso de Uribe, belicoso e antijurídico, enaltece “La Violencia”, máxima na guerra total:
- “Se os paramilitares fazem campanha para mim é devido á falta de autoridade na Colômbia. Tanto a guerrilha quanto os paramilitares fazem pressão por algum candidato. Isso não deveria ser permitido. Meu apelo aos colombianos é para que votem conscientes.”
- “A guerra total na Colômbia já existe, devido à ausência da autoridade firme do Estado. Grupos violentos estão em guerra contra a comunidade há muitos anos. Meu trabalho se baseia na credibilidade e minha proposta é de autoridade para barrar a ação dos violentos. Sou sim o candidato da guerra total. Guerra total contra a corrupção, a politicagem e a violência.”
- “Minha política de segurança é democrática, para proteger todos. Minha proposta é mais ambiciosa. Quero juntar os 40 milhões de colombianos numa resistência civil para apoiar as forças públicas. As pessoas se transformariam em informantes, para denunciar e evitar a ação de paramilitares e guerrilheiros.”
Com o pai vítima das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC -, ao resistir àquilo que elas classificam como detención e não reconhecem como sequestro, Uribe, contra quem não foram apuradas provas, no mínimo, resultou beneficiário do apoio dos paramilitares, responsáveis por parte expressiva da violência contra 2 milhões de deslocados. Com 52,9% dos sufrágios, o novo Presidente da República, em perspectiva equivocada, é o entusiasta da paramilitarização da nação, tornando aqueles que não lograram ser cidadãos, componentes das milícias subcívicas, espécies de brigadas fascistas tropicais a serviço da guerra total. Trata-se de uma política de segurança, na realidade, nada democrática, suscetível de produzir, em vez da autoridade, a firme arbitrariedade do Estado Policial, híbrido e estéril, ampliando, por meio da guerra total, a corrupção, a violência e a politicagem. O argumento revela o amor à vontade única e ao consenso máximo, por parte do novo Presidente da República, em uma nação de 40 milhões de delatores civis remunerados, sujeitos à vergonha e ao desprezo das filas de pagamento às segundas-feiras, o Dia da Recompensa. O Presidente Uribe, entretanto, será alçado à condição de gênio político se, com sua atitude de força bruta (guerra), respeitar a força justa (direito) e promover a paz social (um bem mais comum). Se, em aliança geopolítica e militar com os Estados Unidos, ao comprar a mercadoria do antiterror e correr o risco de hipotecar a soberania nacional, conseguir unificar o inconsciente coletivo colombiano, onde há a chaga de uma secessão provocada, no passado, pelo país de George W. Bush, por meio do desmembramento do Panamá, no intuito de facilitar, àquela altura, o negócio estratégico do Canal. Se, ao promover a guerra total apoiada, ao Norte da América, pelo Departamento de Estado, alcançar revesti-la com o escudo ético da Organização das Nações Unidas: as práticas de força e de sangue, em ilusionismo espetacular, seriam escondidas por estímulos à promoção dos Direitos Humanos. E, afinal, descumprindo para dentro o Direito de Haia, ao cometer excessos comportamentais de Estado durante o combate às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC -, que querem ser Estado, cegar o fio da navalha e respeitar, estranhamente, o Direito Internacional Humanitário.
Se o desafio proposto for vencido, com a supremacia oficial no conflito armado não-internacional em debate, internacionalizado, pela presença (in) direta dos Estados Unidos, o campeão do torneio bélico, por paradoxal que pareça, quiçá venha recolher as batatas e as cascas, como precário troféu. É que o esmagamento militar temporário de uma das partes do conflito armado, por si só, não é resposta para as profundas raízes históricas da contraposição intestina de uma sociedade. Significará apenas um aparente cumprimento do Artigo 22 da Constituição Política da Colômbia: “La paz es un derecho y un deber de obligatorio cumplimiento.” E o Presidente Uribe, eleito com quase 50% de abstenções, mesmo se vitorioso no sentido imediato, poderá vir a sentar no banco dos réus e ser condenado no tribunal da história. Em resumo, eis a tese aqui defendida: a única e verdadeira arma da Colômbia é aquela capacitada a produzir o direito à esperança e a vigência da vontade de construir o futuro, ou seja, a Geração de 91 e as que vão lhe suceder.
Que Geração é esta? A que demonstrou capacidade, da sociedade civil para o Estado, de articular um movimento social aberto, plural e complexo, cuja vontade constituinte liberal radical, democrática e progressista, pela primeira vez sem tutela autocrática, desembocou na Constituição Política da Colômbia de 1991. A que prossegue lutando no cenário presente e que prefigura alternativas pós-conflito, ao articular a sociedade civil e buscar reconstruir o Estado, para estancar a vergonha de ter um militar fardado na televisão, explicando o desaparecimento de milhões de dólares da ajuda norteamericana para o combate ao narcotráfico. A que acredita na formação e no diálogo políticos, desenvolve programas de organização, influencia as políticas públicas, dissemina a cultura de paz, demanda por Direitos Humanos, estimula o diálogo nacional, promove o trabalho juvenil, combate o tráfico e o consumo de drogas e se insere na cooperação internacional. A que, civilista, construtiva, pacifista, visionária, liberal, democrática e solidarista, pretende levantar um muro de contenção contra a barbárie e a atrocidade e edificar respostas às grandes aspirações da cidadania colombiana:
Justiça Social .................................................................................................................................................................... 32% Direitos Humanos .......................................................................................................................................................... 23% Sustentabilidade Ambiental ......................................................................................................................................... 12% Articulação com o Mundo e Competitividade .......................................................................................................... 11% Democracia e Respeito à Diversidade Cultural ....................................................................................................... 32% Mobilidade Social Legítima ............................................................................................................................................ 7% Autonomia Regional ........................................................................................................................................................ 5% Fonte: Marcador de Livros do Partido Visionário. “Plataforma”. Bogotá, PV, s/d, face 2.
A Geração de 91 se encontra agora em organizações sociais, políticas públicas, movimentos coletivos, setores do Estado, partidos políticos em execução de diplomas legais, a exemplo de n° 375, de 4 de julho de 1997, conhecido como Lei da Juventude. União Colombiana da Juventude Democrática, Diálogo Nacional, Narco Não, Feiras do Trabalho Juvenil, Pólo Democrático, Colômbia Sim, Jovens Protagonistas da Paz, Colômbia Jovem e Muro contra a Barbárie são, decerto, referências de construção da paz para a transformação nacional, mais consequentes do que todas as balas e todas as bombas da guerra total. Onde estarão amanhã a Geração de 91 e as que vão lhe suceder? Muito pouco importa, se todas seguirem lutando pelo direito: justiça social, direitos humanos, sustentabilidade ambiental, articulação com o mundo e solidariedade, democracia e respeito à diversidade cultural, mobilidade social legítima e autonomia regional.
A Colômbia da unidade na diversidade está por ser construída. Todo e qualquer projeto de competividade (para fora), que não seja a expressão de um compromisso solidário (para dentro), ampliará a tragédia nacional. O genocídio de compatriotas, muito mais. No massacre de Bojayá foram 117 os mortos, 105 os feridos e incontáveis os desaparecidos, como resultado do embate entre 400 paramilitares e 1000 guerrilheiros. El Tiempo noticiou; “Hay 51 muertos en um bote. Están uno sobre otro. Los cadáveres se pudren. “Sem a solidária unidade na diversidade, toda a Colômbia será um cadáver em decomposição. Ela, a tierra querida, que pode transformar a exportação petrolífera, os recursos oceânicos, o patrimônio da biodiversidade, a riqueza da fruticultura, o turismo ambiental e cultural etc, em efetivo direito à esperança, com a conquista e com a partilha do bem mais comum da qualidade de vida.
Só desta maneira será possível sonhar, e a vida é sonho, como ensinou Calderón de La Barca.
Sonhar com uma Colômbia de justiça e de liberdade, onde não mais seja possível o diálogo da legião dos desesperados, de Gabriel García Márquez:
- “Todo mundo ganhará com o galo, menos nós. Somos os únicos que não temos nem um centavo para apostar.
- O dono do galo tem direito a vinte por cento.
- Você também tinha direito a um posto, quando o punham a moer os ossos na eleição – replicou a mulher – também tinha direito à pensão de veterano, depois de expor a pele na guerra civil. Agora todos têm a vida assegurada e você está morrendo de fome, completamente só.
- Não estou só – disse o coronel.
” Uma Colômbia de justiça e de liberdade, construída sob os processos das vigílias coletivas, ao sol, ao sal e ao sonho de novas consciências jurídicas e políticas, onde seja sempre mais possível, em todos os recantos, desfrutar da beleza dos passeios de bicicletas nas manhãs de domingo de Santa Fé de Bogotá, quem sabe a homenagear o Bolívar de Byron:
“Y cuando el universo horrorizado
Con la hidrópica sed de sangre y oro
Que abraza el cruel
y codicioso ibero. Sepulta en el más hondo y justo olvido
Las proezas ominosas de Pizarro,
y estático se torna y complacido
A admirar las virtudes de um Bolívar
Ostentadas daquier, em benefício
De la oprimida humanidad, y puebla
Los aires con las dulces bendiciones
Y loores de que al héroe colombiano
Llenarán las edades más remotas.
” A revisitação deste ensaio, quase um quarto de século depois de escrito, evidencia que a guerra total, realmente, não era o caminho para a reconstrução da Colômbia. Quem diria que o país seria presidido por Gustavo Petro e Francia Marquez? Eleitos ambos pelo voto popular. Ele, guerrilheiro do M-19, que depôs as armas e avançou, de maneira resoluta, para a política institucional, tornando-se Prefeito de Bogotá, Senador e agora Presidente da República, logrando êxito na eleição presidencial, em sua terceira tentativa. Ela, ativista ambiental, que liderou, por mais de uma década, a resistência ao garimpo predatório de ouro, no qual trabalhou, transitando, depois, para a condição de empregada doméstica, formando-se em direito, por força de sua determinação, sem que deixasse nunca o ativismo social, chegando, neste quadro, a ser a primeira mulher negra Vice-Presidente da República.
As pontes para o diálogo estão levantadas, no intuito desafiante de pacificar o país, em que, a despeito de acordos formados entre Governo e Guerrilhas, a eclosão da violência ainda acontece, em demonstração de que, uma Colômbia de liberdade com justiça, para a paz social, ancorada em um bem mais comum, constitui um horizonte a ser percorrido passo a passo, geração a geração, desativando as fontes do narcotráfico, do terrorismo, dos desaparecimentos, dos deslocamentos, do tráfico de pessoas, enfim, da recorrente violação dos Direitos Humanos, por meio da construção processual de uma nova ordem, includente e solidária, humanista e democrática, representa um projeto de nação, unificador de todas as Colômbias, como, até o presente, jamais aconteceu. Este é o sonho necessário, a desafiar o impossível, como força movente de uma sociedade civil mais organizada, mobilizada e participante, com vontade política de reconstruir a si mesma, dirigindo a melhor a sociedade política, controlando e redirecionando o poder do Estado e colocando-o a serviço republicano de um bem mais comum.
Rossini
Corrêa pertence aos quadros das Academias de Letras do Maranhão e de Brasília. É
um dos mais brilhantes ensaístas brasileiros da atualidade com dezenas de obras
lançadas no campo da Filosofia, Historiografia Literária, Teologia, Direito e Sociologia. Nasceu em São Luís.
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