sábado, 4 de dezembro de 2021

PAÍS

Sucessão de ataques é intensificada após processo de defesa e retomada de territórios explorados por grileiros

Indígenas do Povo Akroá Gamela, Terra Indígena (TI) Taquaritiua, no estado do Maranhão, vivem sob ameaças e uma sucessão de violências há mais de um século, quando foram expulsos de suas terras por fazendeiros e grileiros que invadiram e exploram a região amazônica.

Entre negações de direitos, expulsões do território, massacres sangrentos e reconhecimento indígena questionado, os Gamella já chegaram a ser declarados, inclusive, extintos do território brasileiro, segundo denuncia do relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil.

Vítimas do massacre de 2017 tiveram mãos dilaceradas por jagunços e ainda sofrem com as sequelas. 

Apesar de tudo, os indígenas resistem em cerca de 14 mil hectares localizados nos municípios de Matinha, Penalva e Viana e, desde a década de 1970, iniciaram um processo de resistência e luta pela retomada do território e identidade, já comprovados por documentos históricos de 1765.

No último mês, movimentos nacionais e internacionais emitiram notas de apoio aos Gamella, vítimas de mais um conjunto de arbitrariedades, quando 19 indígenas foram detidos na aldeia Cajueiro, levados à força para a delegacia do município de Viana e tiveram seus cabelos raspados, sem qualquer chance de defesa. 

O ato de corte do cabelo dos indígenas detidos foi considerado violento, racista, autoritário e gerou uma onda de solidariedade e resistência ao retornarem para a aldeia. Homens, mulheres e crianças também rasparam a cabeça, que se mantêm erguidas. Coletivamente, será feita uma doação ao Hospital Aldenora Bello, que atende pacientes com câncer em São Luís.

Em solidariedade aos que tiveram suas cabeças raspadas na prisão, parentes rasparam também as suas.

Entre os detidos no último mês estava o agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Inaldo Kum´tum, liderança com forte atuação em defesa dos territórios tradicionais e uma das vítimas de violento ataque marcado pela data de 30 de abril de 2017, quando cerca de trinta indígenas foram atacados no território maranhense, quase tiveram membros decepados e vivem com as sequelas do massacre até hoje.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) já vinham denunciando a tensão instaurada na região, entre outros motivos, em razão da tentativa de passagem de linhas de transmissão elétrica para atender a empreendimentos privados, sem consulta aos povos indígenas. 

Com cerca de 155 quilômetros, a chamada Linha de Transmissão Miranda do Norte - Três Marias está sendo construída desde 2016 e liga as subestações das cidades de Miranda do Norte e Pinheiro e pretende cortar a área de indígena em cerca sete quilômetros de extensão e, desde então, recorre à autorização judicial, sem diálogo com os povos indígenas.

Rafael Silva, advogado e assessor jurídico da CPT que acompanha os casos de conflitos no campo, no estado do Maranhão, e que teve papel fundamental na libertação dos indígenas detidos, explica que a eles, historicamente, tem sido negado o direito de existir.

“Os Akroá-Gamella vivem uma longa história de violências, silenciamento e invisibilização. Sua luta por território é uma luta pelo direito de existir, como eles próprios costumam dizer. Essa existência incomoda ao poder político, econômico e do mercado local de terras, que sempre atuou para negar-lhes o direito à vida enquanto povo indígena. Essa atual fase histórica de ameaças e violências contra os Gamella se iniciou em 2014/2015, em um continum até hoje”, explica.

Atendimento médico a indígena atacado em violento conflito, no ano de 2017. 

Desde o massacre de 2017, os Akroá Gamella estão incluídos coletivamente no Programa Estadual de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, que mantém sob a proteção estadual defensores de direitos humanos em situação de risco. Segundo o advogado, esse é um caso único de inclusão coletiva de um povo no estado.

“A condição dos Gamella é, portanto, de ameaça constante, marcada por eventos de violências advindas de particulares, mas também por violência institucional, como o caso presente demonstra. As represálias estão sempre em curso, seja por omissão intencional, seja pela criminalização como escolha política”. 

"Não-índios"

Por terem sido expulsos de seus territórios, recai aos Akroá Gamella, principalmente, o questionamento se são ou não indígenas, o que além de racismo e diversas formas violências, entre elas está a coleta de material sanguíneo por parte de um major de polícia, segundo explica o relatório "Uma anatomia das práticas de silenciamento indígena".

Trecho do documento diz que "Quando o massacre ocorreu, até mesmo autoridades negaram publicamente a identidade indígena dessas pessoas. O Ministério da Justiça e Segurança Pública ao se manifestar sobre o ocorrido referiu-se aos AkroáGamella como supostos indígenas".  

Missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Meire Diniz condena o racismo estrutural que legitima a violência com base em questionamentos se os Gamella são ou não indígenas, uma vez que além dos documentos históricos, eles estão respaldados pela Constituição Brasileira e o direito de autodeclaração.

“E o povo Akroá Gamella desde sempre tem exercido esse direito. O direito à sua existência a partir da luta pelo seu território, pela recuperação do seu território que foi grilado, que continua agora sendo desmatado e destruído pela Norte Energia. Nessa luta pela garantia do seu território, exercendo o seu direito pela existência, ele é criminalizado”, declara Meire.

Cerca de 15 mil indígenas lutam pela retomada de território, explorado por grileiros e latifundiários. 

Ao relembrar as promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro contra os povos indígenas, Meire destaca que está visivelmente declarada uma guerra contra as comunidades tradicionais, destacando inclusive mais um recente ataque ao Território Indígena Raposa Serra do Sol, que se assemelha ao caso dos Akroá Gamella.A violência contra os povos indígenas e seus territórios tem estampado as manchetes internacionais, e, segundo o Atlas da Violência 2021, a omissão na fiscalização e proteção de Terras Indígenas por parte do atual governo, aliada à exploração ilegal de madeira, o garimpo ilegal e invasões a serviço do agronegócio contribuiu não só para a degradação ambiental no último período, como também para o aumento das agressões.

"A gente pode olhar que uma semana antes do ataque aos Akroá Gamella, o povo da Raposa do Sol também foi atacado pela Polícia Militar, por conta da defesa em seu território. Você observa que tem uma situação de guerra contra os povos originários. Quem olha de fora, quem vê a natureza como mercadoria, acha que os povos estão atrapalhando o desenvolvimento, mas os povos estão desde sempre defendendo o envolvimento com a natureza, com a terra, com a água, com todos os seres, portanto, o modo de vida que se sustenta”.

Outro lado

Sobre a prisão de indígenas Akroá Gamella no dia 18 de novembro, a Secretaria de Segurança do Maranhão (SSP/MA) nega versão emitida pelos Gamella, pela CPT e pelo CIMI e acata versão da companhia energética, ao declarar, em nota, que funcionários da companhia energética teriam sido feito reféns. “Os Policiais não reagiram, para evitar quaisquer confrontos. O reforço foi solicitado e os reféns devidamente resgatados e quatro autores conduzidos para a Delegacia Regional de Viana”, diz trecho.

A empresa Equatorial Energia, por sua vez, declara em nota que enviou funcionários ao território na tentativa de agendar uma reunião, com a finalidade de entender as reivindicações dos indígenas. “A companhia, diante da situação exposta, de imediato suspendeu a obra até que os fatos sejam investigados pelos órgãos competentes, de modo a garantir a segurança de todos”.


MARIANA CASTRO

EDIÇÃO DE ANB

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