Língua portuguesa?
Por Antonio Noberto
Um amigo europeu que
sempre passa férias no Brasil, não faz muitos meses, trouxe-nos uma questão que
não é nova. Queria saber o porquê do nosso idioma ainda se chamar português.
Ele resumiu que, para os europeus mais inteirados da cultura brasileira, em razão
da maiúscula participação de termos indígenas, africanos e estrangeiros na
língua brasileira, é incompreensível o país ainda manter algo que não interessa
à cultura, a política e, muito menos, à economia nacional. Finalizou dizendo
que nossa língua é O BRASILEIRO, e não o português. “É uma questão de justiça e
independência”, arrematou.
As palavras do nosso
amigo, entre outras coisas, nos fizeram refletir também sobre a recente
adequação ou revisão ortográfica da língua portuguesa. Em Portugal a resistência
à alteração na gramática é assaz acentuada. Tem gente chiando barbaridade, como
uma portuguesa que, em um site, sobre a reforma, postou o seguinte: “Mais uma
vez Portugal rebaixa-se, porque razão é que temos que ser nós a mudar e não os
brasileiros, eles é que não tiveram inteligência suficiente para aprender a
língua correctamente, e agora por causa disso somos nós que temos que aprender
nossa língua novamente? Como é que vamos pôr nas cabecinhas das nossas crianças
que a maneira como aprenderam a escrever agora já não é a correcta. Quanto a
mim vou continuar a escrever como sempre escrevi, sou portuguesa não sou
brasileira”. Ela chega a nos chamar de 'burros brasileiros'. Mas, como toda
moeda tem dois lados, perguntamos: será que ela não tem lá suas razões? O seu
sagrado direito de, no mínimo, espernear? Portugal errou quando fez sua
primeira grande reforma há um século e – como era de se esperar – não consultou
o Brasil, aumentando, com isto, a distância lingüística entre o dois países. O
certo é que o Brasil tem quase duzentos milhões de habitantes e Portugal apenas
dez. Ou este se adéqua a mudança ou “não sabemos” o que lhe poderá acontecer. A
adequação é questão de sobrevivência para o país do Velho Mundo, que, mesmo com
a irrelevante e frágil economia, nunca perdeu o hábito de querer ser
colonizador.
Mas não percamos o foco… Até meados do século XVIII vigorava no Brasil o escambo, vez que, pela escassez de cédulas e de moedas de metal, a moeda corrente era o pano ou rolo de algodão. O famoso escritor Laurentino Gomes, repetindo as palavras de um viajante francês, disse: “Antes da chegada da Corte ao Rio de Janeiro, o Brasil era um amontoado de regiões com pouco contato, isoladas umas das outras, sem comércio ou qualquer outra forma de relacionamento”. E a língua mais falada até aquela época era o tupi-guarani. Isso mesmo, a língua indígena foi a língua mais falada no Brasil até a metade daquele século. Nessa época a população branca era consideravelmente pequena. Em 1600, por exemplo, era de apenas 30.000 e em 1766 a população livre girava em torno de 800.000 (Cronologia de história do Brasil Colonial – 1500 – 1831 / Andrea Slemian… et al. São Paulo; FFLCH-USP. 1994). Em 1756 o Marquês de Pombal proibiu a utilização de qualquer outra língua, inclusive a língua geral, de base tupi.
Os africanos foram escravizados e os indígenas dizimados, o mesmo, felizmente, não conseguiram fazer totalmente com a língua destes povos que, incorporada ao idioma oficial do país, atravessou séculos e permanece viva através dos milhares de termos que usamos no dia a dia.O legado da cultura
negra é bastante presente no Brasil, percebemos isto na religião, na comida,
música, no modo de ver a vida, nos mitos e lendas, e também na própria língua.
Para cá vieram negros de quase toda a África, sendo o destaque por conta de
dois grandes grupos: o guineano-sudanês e o banto – que habitava o litoral
africano. Provenientes em sua maioria do Benin, Angola, Nigéria e Congo,
falavam diversas línguas e dialetos como o quimbundo, quicongo e o umbundo, dos
quais herdamos inúmeros termos, sendo: vatapá, quitute, farofa, acarajé,
canjica, mandinga, oxalá, iemanjá, ogum, senzala, Bangu, quilombo, miçanga,
tanga, samba, berimbau, maxixe, maribondo, camundongo, mangangá, mutamba,
dendê, quiabo, moleque, bagunça, cachimbo, coringa, dengo, quitanda, fubá,
bunda, calombo, banguela, e incontáveis outros. Algumas se misturaram com o
português: pé-de-moleque, angu-de-caroço, mini-tanga, molecagem, etc. Um
maiúsculo legado para nossa língua que não cabe em um simples texto, mas em um
volumoso dicionário.
Do tupi-guarani são
milhares as palavras herdadas dos primeiros habitantes do Brasil. “Do Oiapoque
ao Chuí!” a língua inicial tira de letra. São nomes de lugares – a maioria dos
nomes dos estados brasileiros são de origem indígena –, acidentes geográficos,
nomes de pessoas, etc. A culinária brasileira típica é profundamente indígena.
Mas a gente pode começar por uma palavra que pipocou na rede mundial, ao menos
aos usuários do Facebook: cutucar – tocar alguém com algo em forma de ponta.
Não menos lembradas: cuia, embiocar, espocar, canoa, igapó, abacaxi, capenga,
aipim, jacá, araçá, Aracaju, taquara, beiju, bocó, boitatá, buriti, bruaca,
iara, Ipanema, Itaipava, Itamaracá, Itapemirim, tororó, jiqui, jirimum, jururu,
piracema, pirão, pitada, pixaim, Piauí, Ceará, Paraíba, Paraná, Pernambuco,
Pará, Goiás, Acre, perereca, peteca, pipoca, pindorama, mandioca, maniçoba,
maruim, mingau, mirim, moqueca, mussum, mutirão, mutuca, paçoca, socar,
pamonha… E tantas e tantas outras.
Os termos indígenas e
africanos não raro sofreram um doloroso processo de depreciação, como parte de
uma política de dominação do vencedor luso. Vemos isto, por exemplo, em mulher
(cunhã), menino (curumim), interiorano (caipira), garoto (guri), morada
(tapera), piolho / sovina (muquirana), vadia (piranha), pobre (pindaíba),
bruxaria / ritual (pajelança), lerdo / tonto (pamonha), pereba, etc.
A influência
estrangeira na nossa língua e cultura também é muito presente. Temos então, a
título de exemplo. Do francês: abajur, ateliê, baguete, baton, bege, bistrô,
bijuteria, boate, carrossel, capô, cassetete, etc. Catalã: beldade, baixela,
capacete, convite, disfarçar, esmalte, faixa, nau, moscatel, etc. Do inglês:
bife, blecaute, blefe, club, coquetel, craque, dólar, drinque, futebol, gol,
etc., quase todos os termos utilizados na informática. E tantas outras
participações alógenas.
A mudança da
nomenclatura da língua – de português para O BRASILEIRO – será um enorme ganho,
principalmente através da atividade turística, uma ótima oportunidade de
divulgação da cultura nacional genuína, uma forma de emergir a cultura local
gerando riquezas e empregos aos nacionais, pois o estrangeiro ainda tem muita
curiosidade com relação à cultura brasileira. Outro ganho imensurável é que as
incursões governamentais que tentam diminuir a desigualdade entre ricos e
pobres ganhariam reforço, vez que o resgate de tão valoroso legado
afro-indígena traria para a pauta as duas culturas secularmente marginalizadas
pelo privilégio branco.
Para um país que vem
galgando enormes passos e vencendo degraus na economia é importante atentar
também ao campo cultural sob pena deste não acompanhar a contento o avanço do
nosso mercado e não fincarmos marcos mais profundos, quando todos sabem que o poder
não prescinde de uma forte produção cultural (existe exemplo mais flagrante do
que a produção Hollyhoodiana?). Os galhos do poder constituído são uma
tentação, é verdade, mas não devemos ter receio das idéias alternativas, pois,
neste caso, a justa adoção dO BRASILEIRO, ainda que não nos leve ao Jardim do
Éden, aumentará a estima dos brasileiros e poderá ser um vetor a mais na
atração de fluxos estrangeiros a este paraíso para conhecerem esta terra ainda
tida por muitos como sem males. Sonho do imaginário estrangeiro que perdura,
sem, no entanto, ser devidamente explorado através da nossa atividade
turística.
Viva o idioma
BRASILEIRO!
Antonio Noberto é
historiador, acadêmico, ensaísta, inspetor PRF, turismólogo, escritor e sócio-efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Ex-presidente da ALL-Academia
Ludovicense de Letras.
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