Da captura ao sonho da demarcação
Povo que mais resistiu ao contato com o colonizador no Brasil
Central teve terra declarada no dia do golpe de 2016
''Era a marginalização absoluta, a invisibilidade total. O povo mais esquecido que já vi na face da Terra''.
A antropóloga Patrícia Mendonça lembra a impressão que teve
em seus primeiros encontros com o povo ãwa do Araguaia – conhecido na
literatura como avá-canoeiro e regionalmente como cara preta – nos
anos 1990. Na época, a Fundação Nacional do Índio (Funai) considerava esses
indígenas “mestiços” e “aculturados”.
O trauma do contato forçado com os colonizadores, somado às
diferenças linguísticas, impediu por décadas que eles relatassem suas memórias.
Graças ao esforço e à insistência de ambientalistas,
ativistas e antropólogos, sua história vem sendo conhecida e respeitada.
À espera da demarcação da terra Taego Ãwa, no
Tocantins, os avá-canoeiro continuam espalhados em aldeias javaé e karajá na
Ilha do Bananal.
À Reportagem, eles relatam a dificuldade de viver subjugados
a outros povos, principalmente os javaé, com quem têm inimizade histórica.
São 33 indivíduos que se reconhecem hoje como avá-canoeiro do Araguaia – quase todos, filhos de casamentos interétnicos.
No sangue de cada um deles, corre uma história de dor e
resistência, que alimenta a esperança no mito profético do retorno para casa.Graças ao esforço e à insistência de ambientalistas, ativistas e antropólogos, sua história vem sendo conhecida e respeitada.
Extermínio e fragmentação
Em diferentes artigos, os avá-canoeiro são citados como o
“povo que mais resistiu ao contato com o colonizador no Brasil Central”.
O enfrentamento do povo autodenominado ãwa – que, em
tupi-guarani, significa ser humano, pessoa adulta – com os invasores brancos
começou no século 18, na bacia do rio Tocantins.
Parte dos sobreviventes das primeiras tentativas de genocídio
migrou a partir de 1830 para províncias inundáveis do rio Araguaia que hoje
pertencem ao estado do Tocantins.
Com essa separação, os avá-canoeiro do Araguaia passam a
escrever uma história distinta, desenvolvendo seu próprio dialeto da língua
tupi-guarani e distinguindo-se etnicamente.
Por mais de um século, eles foram alvo de massacres,
conviveram com a aproximação dos brancos por várias frentes e tiveram inúmeros
confrontos com os javaé e os karajá.
Entre uma fuga e outra, 14 sobreviventes se fixaram no final
da década de 1960 em uma localidade conhecida como Mata Azul, dentro da Ilha do
Bananal.
Onze foram capturados pela chamada Frente de Atração da
Funai, em 1973. Eram tempos de ditadura militar, e intervenções violentas eram
legitimadas por um discurso de “integração” dos povos indígenas à sociedade –
hoje, ecoado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Na época, a Funai fez um ataque surpresa, com fogos de
artifício, e os avá-canoeiro resistiram com flechas. Uma menina foi baleada e
morreu três dias depois. Seis indígenas foram capturados e quatro fugiram pela
mata – só foram localizados no ano seguinte.
“Meu avô foi capturado. Eu digo capturado porque ele não fez
o contato porque quis”, relata Typyire, que vive na aldeia Hawaló, na Ilha do
Bananal, com o esposo karajá e quatro filhos.
O avô dela é o xamã Tutawa, líder dos avá-canoeiro,
morto em 2015.
Typyire é uma das seis filhas de Kaukama, única remanescente
do contato forçado de 1973 que continua viva.
Na época, Tutawa só se entregou à Funai porque sua esposa
Watuma e seus filhos haviam sido presos.
Dos onze avá encontrados pela Frente, seis morreram antes de
1976. Naquele ano, após sofrerem abusos físicos e emocionais na Mata Azul, a
Funai determinou que eles fossem transferidos à aldeia Canoanã, território
tradicional dos javaé.
Essa história trágica, que ganhou destaque no relatório
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), é um trauma até hoje para os
avá-canoeiro.
“A gente não costuma conversar muito sobre isso, porque é
muito doloroso. Foi um contato forçado, violento”, relata Typyire.
“Eu tenho muito orgulho do meu avô, por ter resistido e
mantido nossa memória, nossa língua, nossa cultura. A gente faz dessa dor,
força.”
DANIEL GIOVANAZ
EDIÇÃO DE ANB
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