quarta-feira, 8 de agosto de 2018
Mortes recentes de índios isolados pouco tempo depois do primeiro contato com a sociedade exterior trazem à tona velhos traumas. Casos são exemplos de sua luta para permanecerem não contatados
Jakarewyj exalou o último suspiro em sua rede, em
algum dia de 2017. Sua irmã Amakaria a encontrou inerte; não soube dizer
quando havia partido. Com sua morte, essa mulher indígena Awá pôs fim a
uma vida de luta durante a qual só pediu para que a deixassem viver
isolada na Terra Indígena Caru, em plena Amazônia brasileira. Passou
seus últimos dois anos como refém de gripe e da tuberculose, doenças
respiratórias trazidas por madeireiros ilegais que extraem seus
preciosos recursos naturais. Em outras partes do mundo essas doenças
podem ser tratadas e curadas, mas para ela foram mortais porque seu
sistema imunológico não estava preparado.
Jakarewyj viveu durante muitos anos com a irmã Amakaria e o filho, Irahoa, como caçadoras-coletoras nômades. “Até que adoeceram e foram obrigadas a se aproximar dos Awá contatados, que moram em residências fixas”. Em 2015 Shenker visitou a comunidade, apenas dois meses depois da chegada dessa família, e encontrou as duas mulheres prostradas em suas redes, muito magras e debilitadas, incapazes de falar ou se mover. “Foi horrível, eu não sou médica, mas era óbvio que estavam morrendo. Tirei uma foto delas para mostrar ao mundo o que acontece depois do primeiro contato e para pressionar o Governo a fazer algo rápido”.
Um povo à beira da extinção
Os índios não contatados são os mais vulneráveis do mundo, mas a Survival estima
que os Awá estejam na situação mais delicada neste momento. Uma das
principais ameaças é a perda de seu território devido ao desmatamento,
pois o tráfego ilegal de madeira está na ordem do dia. “Teoricamente
não é permitido e há multas e prisão, mas na prática nestas áreas os
madeireiros gozam de impunidade, porque sabem que podem continuar
trabalhando e que o pior que lhes pode acontecer é serem parados e terem
de pagar uma pequena multa”, diz Shenker.
Jakarewyj exalou o último suspiro em sua rede, em algum dia de 2017. Sua irmã Amakaria a encontrou inerte. |
Nos últimos tempos, a situação política do Brasil é um motivo a mais de preocupação. A Constituição de 1988 garante aos indígenas uma estrutura jurídica e política própria, além do direito às terras que tradicionalmente ocupam. Mas sempre houve pressões sobre elas porque são as de maior biodiversidade do mundo –“eles sabem cuidar muito bem delas, são os melhores guardiães porque estamos falando de seu lar”, observa Shenker– e seus recursos, os mais cobiçados. Agora a pressão é maior porque mais de 50% do Congresso brasileiro é formado por políticos anti-indígenas. “Querem estimular grandes projetos do agronegócio que afetam quantidades enormes de terras. Esses políticos estão tentando mudar a Constituição para que seja mais fácil abrir as terras indígenas a essa exploração. Isso poderia aniquilar povos inteiros”, resume a pesquisadora.
Todas essas ameaças levam ao fim do isolamento dessas minorias, com consequências nefastas. “Mais
de 50% podem morrer pouco tempo depois de um primeiro contato por causa
de doenças como a gripe ou o sarampo, contra as quais não têm imunidade”, diz a pesquisadora. Também pela violência exercida pelos invasores, porque os veem como um obstáculo e não os querem ali. “Aproximam-se para ver se os matam ou então os ameaçam”.
Quando isso acontece, são os próprios indígenas que às vezes fazem
contato porque temem por sua vida. Há poucos casos em que decidem
integrar-se a uma sociedade industrializada. “Se for voluntário,
está bem, não somos contra, lutamos para que eles possam decidir. É seu
direito legal e moral, seu direito à autodeterminação.” E ainda assim, continua sendo perigoso para suas vidas. “O Governo deveria ter um plano de ação para poder mandar rapidamente equipes de saúde, mas isso não está acontecendo”, lamenta Shenker.
O caso das irmãs awás representou um grande alívio
naquele momento, porque foram salvas. As fotos que Shenker tirou deram a
volta ao mundo e centenas de milhares de simpatizantes enviaram emails
urgentes às autoridades. O Governo mandou equipes de saúde para
atendê-las, mas não puderam porque as encontraram quase mortas, por isso
tiveram de transferi-las de helicóptero para a capital, a cidade de São
Luis. “Imagine mulheres que nunca tinham conhecido outra forma de
vida além da floresta, não tinham visitado uma cidade… O que isso
significou para elas”, reflete a ativista. Permaneceram três meses
em um hospital, em estado muito grave. Para Shenker foi quase um milagre
terem se recuperado.
Quando voltaram a Caru, Jakarewyj e Amakaria
decidiram regressar à floresta e as suas vidas nômades encobrindo seu
rastro porque não queriam que outros awás as seguissem. Só Irahoa ficou
na comunidade porque se casou. “É um exemplo muito claro da
determinação dos indígenas isolados: vemos muitos exemplos de que não
querem o contato: apontam com suas flechas para cima quando há aviões
passando, deixam flechas cruzadas nas trilhas da selva...” descreve Shenker.
Sociedade isolada versus sociedade industrializada
Em um momento em que a maioria dos países se
comprometeu a cumprir a Agenda 2030 de desenvolvimento, que inclui
objetivos como reduzir a mortalidade materna ou conseguir o acesso
universal a atendimento de saúde e à educação, pensar em que deve ser
aberta uma exceção pode parecer sem sentido. De fato, até 1987 a
política no Brasil era a de contatar as minorias para “pacificá-las” e
disso estavam encarregados profissionais especializados da Fundação
Nacional do Índio (Funai). Mas foram tantas as mortes que essa
estratégia deu uma guinada de 180 graus. Um dos mais firmes defensores
da mudança é Sidney Possuelo, que como membro da Funai organizou
numerosas expedições durante 40 anos e foi testemunha de tantas
tragédias que, no final, se deu conta de que o mundo externo não era
benéfico para eles. “Acreditava que seria possível fazer isso sem
dor ou mortes e organizei uma das frentes mais bem equipadas que a Funai
teve até hoje. Preparei tudo (…). Pensei: ‘Não deixarem que nem um só
índio morra’. E houve o contato, as doenças chegaram e os índios
morreram”, relatou em um livro.
“Levar um remédio ou dotá-los de educação
formal não os ajuda se não vão aproveitar isso porque morreram. Por
outro lado, é um argumento arrogante porque dá como certo que os não
índios sabem melhor como eles deveriam viver”, protesta a pesquisadora. “Mas
eles têm seu modo, seus remédios e sua forma de educar as crianças
naquilo que vão precisar dos adultos: aprendem a caçar, a pescar a
interpretar os sinais do tempo… Aprendem as histórias orais de seus
povos”, argumenta. “Estamos em 2018 e eles continuam resistindo, apesar de tudo, esse é o argumento mais revelador.”
Esta história não tem um final feliz. Quando
Shenker regressou no ano passado para visitar os awás, encontrou somente
uma delas. Amakaria contou que sua irmã voltou a ficar doente e passava
todo o tempo em sua rede, deitada, enquanto ela buscava alimento para
as duas. Um dia, quando tentava caçar um jacaré, escutou um tiro. “Um
grupo de homens, madeireiros certamente porque são os únicos não-índios
da região, se aproximou da rede e um deles disparou no peito de
Jakarewyi achando que estava dormindo”, relata a pesquisadora, com
pesar. Para a Survival parece provável que a mulher estivesse morta
havia algum tempo e que tenha morrido por causa das doenças contraídas
no passado, “mas a crueldade dos invasores fica estampada nesse disparo no corpo sem vida dessa mulher prostrada”, comunicou na época a entidade.
“Depois da morte da irmã, Amakaria vagou sem rumo durante semanas ou meses pela selva, sem saber o que fazer e muito triste”, afirma Shenker. Agora, a mulher vive na comunidade com outros awás como ela porque “não quer ficar sozinha”.
E agora também sua história e a de sua irmã devem de novo dar a volta
ao mundo para que a sociedade entenda por que é preciso respeitar o modo
de vida das minorias isoladas. Palavra de awá.
A guarda indígena
Ao awás que vivem na floresta de Arariboia, uma
ilha verde em um mar de desmatamento, compartilham o território com
outro povo indígena recém-contatado: os guajajara. São 13.000 pessoas
que vivem em comunidades e decidiram formar grupos de homens
autodenominados Guardiães da Amazônia, coma missão de patrulhar sua
terra, procurar os madeireiros e prendê-los. “Tomam seus caminhões cheios de madeira ilegal e as motosserras. Às vezes os queimam...”, relata a pesquisadora Sarah Shenker, da Survival International.
Os guardiães fazem esse trabalho de proteção da Amazônia para sua terra, para suas famílias e para os awás isolados. “É
um trabalho muito interessante e inspirador porque não deveria ser sua
responsabilidade. O Governo do Brasil é responsável, segundo a lei
brasileira e a lei internacional, pela proteção dessas terra, mas não o
faz.” No entanto, quem faz esse trabalho enfrente grandes perigos:
três deles foram assassinados em 2016, recebem frequentes ameaças de
morte e suas casas foram queimadas em mais de uma ocasião. “Mas dizem que não vão desistir, por eles e pelos awás, pois consideram que estão sofrendo um genocídio”, conta Shenker.
Quando uma comunidade indígena é forçada a se
integrar à sociedade nacional, muitos deles terminam doentes, como
Jakarewyi e sua irmã. Podem sofrer desnutrição e diabetes ao mudar sua
dieta de uma natural baseada em caça, pesca, fruta e mel, ao passar a
viver da ajuda humanitária do Governo consomem arroz, açúcar e outros
alimentos não tão saudáveis para eles. Ao sair de seu entorno também
perdem sua identidade e isso os confunde, os deprime e os leva ao
alcoolismo e suicídio. “Vemos taxas muito altas entre os índios cujas terras foram roubadas, como os guaranis”, resume Shenker.
AS INFORMAÇÕES SÃO DA REPÓRTER LOLA HIERRO, DO EL PAÍS
EDIÇÃO DA AGÊNCIA BALUARTE
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