quinta-feira, 3 de maio de 2018
Temos um exército de graduados analfabetos funcionais e de mestres que não merecem o título. Em um pelotão menor, doutores cujo diploma só serve para enfeitar a parede. Bilhões de reais gastos para investir e manter um grupo cujo retorno científico é pífio. Entretanto, esse não é o pior cenário
POR HUGO FERNANDES FERREIRA, DA TRIBUNA CIENTÍFICA
Vou contar uma história para vocês, para que
entendam em que ponto a Ciência brasileira se insere nessa crise. Ao
personagem, dou o nome de Carinha. Obviamente, é uma história
generalista, que jamais pode ser aplicada a todos, mas pelo menos a uma
enorme parcela dos acadêmicos. Você verá muitos amigos seus na pele do
Carinha. Talvez, você mesmo.
1 – No começo dos anos 2000,
principalmente a partir de 2005, novas universidades começam a surgir e o
número de vagas, inclusive nas já existentes, aumentam
vertiginosamente. A estrutura também melhora e as taxas de evasão de
cursos de Ciência básica (Física, Química, Biologia e Matemática, por
exemplo) caem. O Carinha, então, ingressa em um desses cursos.
2 – O Carinha que entrou em 2005 e
se formou em 2009 passou o período da faculdade desconhecendo o mercado
de trabalho do seu curso fora do meio acadêmico. Ao seu lado, muitos
colegas que passaram quatro anos sem saber nem o que estavam fazendo.
Para o Carinha, não havia outra solução a não ser lecionar em escolas ou
tentar o Mestrado, que oferecia bolsa de pesquisa de R$ 1.100,00. Mas,
para isso, teria que passar por uma difícil e concorrida seleção. Até
que, com o aumento do número de programas e bolsas de pós-graduação, ele
viu então que aquilo não era tão difícil assim. Em 2010, torna-se
mestrando.
3 – Enquanto seu amigo engenheiro
civil****, recém-formado, já está dando entrada para comprar um carro, o
Carinha usa sua bolsa para pagar seus pequenos gastos pessoais, além de
sua pesquisa sem financiamento externo.
Alguns há anos em bolsas de Pós-Doutorado, sem saberem se essas podem ser cortadas no... |
(****PS. Permitam-me uma edição aqui. Fui infeliz
quando exemplifiquei o colega como um engenheiro civil, pois o mercado
para esse profissional atualmente também encontra-se em crise. Tente
imaginar qualquer profissão facilmente absorvida pelo mercado de
trabalho privado e o texto continuará com o mesmo objetivo).
Em dois anos, o Carinha tenta produzir alguns
artigos para enriquecer o currículo. Tem planos para publicar cinco, mas
publica um, em revista de qualis baixo. Em paralelo, entra num forte
estresse para entregar sua dissertação e passar pelo forte crivo da
banca, que pode reprová-lo. Será? Na semana de sua defesa, seu colega
também é aprovado, mas com um projeto medíocre e mal conduzido, que,
apesar de criticado, foi encaminhado pela banca porque reprovações não
são interessantes para a avaliação de conceito do Programa. Normas do
MEC.
4 – Já mestre, publica mais um
artigo e entra no Doutorado, em 2012. Foi mais difícil que o Mestrado,
porém mais fácil do que teria sido anos atrás, por conta do bom número
de bolsas disponível. Boa parte daqueles colegas medianos desiste da
vida acadêmica, mas aquele dito cujo sem perfil de cientista de alto
nível também é aprovado. Afinal, ter bolsas desocupadas não é
interessante, porque senão o Programa é obrigado a devolvê-las. Normas
do MEC.
5 – Sua bolsa de R$ 2.500,00 já
ajuda um pouco sua condição financeira, enquanto aquele colega
engenheiro conta sobre sua primeira casa própria. Além disso, o amigo já
contribui com o INSS, tem seguro desemprego, 13º salário, plano de
saúde, cartão alimentação, entre outros benefícios. O Carinha não, tem
só a bolsa e um abraço. Normas do MEC. Mas, tudo bem, é um investimento
em longo prazo. Logo menos, ele tentará um concurso para ser professor
universitário, com iniciais de cerca de R$9.000,00. Ele se esforça,
publica artigos, dá aulas, redige a Tese, defende e é aprovado. O colega
mediano faz um terço disso, mas também alcança o título.
6 – Eis que, em 2016, Doutor
Carinha se depara com uma grave crise financeira. Cortes profundos no
orçamento, principalmente no Ministério da Educação, tornam escassas as
vagas como docente. Concursos em cidades remotas do interior, antes com
dois, cinco concorrentes no máximo, contam hoje com 30, 50, 80.A solução
então é caminhar urgentemente para um Pós-Doutorado, com bolsa de R$
4.100,00, metade do que ganha seu amigo engenheiro, mas ok, dá um caldo
bom, ainda que continue sem direitos trabalhistas. Pouco tempo atrás, as
bolsas sobravam e os convites eram feitos pelo próprio professor. Hoje,
ele enfrenta uma seleção com 30. Ele passa, o outro colega já fica pelo
caminho, assim como centenas espalhados pelo país. O que eles estão
fazendo agora?
O resumo da história é… Temos um exército de
graduados analfabetos funcionais e de mestres que não merecem o título.
Em um pelotão menor, mas ainda numeroso, doutores cujo diploma só serve
para enfeitar a parede. Bilhões de reais gastos para investir e manter
um grupo cujo retorno científico é pífio para o país. Entretanto, esse
não é o pior cenário.
Alarmante é ver um outro exército de Carinhas, esse
qualificado, com boas produções, só que desempregado e enfrentando a
maior dificuldade financeira de suas vidas. Alguns há anos em bolsas de
Pós-Doutorado, sem saberem se essas podem ser cortadas no ano seguinte.
Se forem, nenhum mísero centavo de seguro desemprego. Na rua, ponto.
Outros abandonando por vez a carreira para tentar os já escassos
concursos públicos em outras áreas ou mesmo para fazer doces caseiros,
entre outras alternativas.
Ao passo que o Governo acertou na criação de novas
universidades, programas e bolsas de pós-graduação nesses últimos 14
anos, a gestão desse material humano e financeiro foi bastante
descontrolada. Quantidade exacerbada de cursos criados sem demanda
profissional, falta de política de cargos e carreiras para o cientista
brasileiro, recursos transportados para um programa de intercâmbio que
não exigia praticamente nenhum produto de um aluno de graduação (sobre
Ciência Sem Fronteiras, teremos um post exclusivo), critérios de
avaliação bem distantes da realidade das melhores universidades do
mundo, além de uma série de outros absurdos.
Teremos cerca de dez anos pela frente para que essa
curva entre oportunidades e demanda volte a estabilizar. Não tenho
dúvidas de que alcançaremos isso. Mas, até lá, cabe a pergunta. O que
faremos com os novos Carinhas que ainda surgem a cada vestibular?
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