domingo, 10 de dezembro de 2017
18:45
| Postado por
Equipe Baluarte
|
A Coca-Cola, a Zona Franca de
Manaus e o rombo de 7 bilhões
A Receita Federal e
organizações da área de saúde tentam há anos desmontar um distorcido sistema de
incentivos fiscais que beneficia grandes produtores de refrigerantes. Empresas
instaladas na Zona Franca de Manaus cobram créditos tributários por impostos
que nunca foram pagos.
Segundo cálculos conservadores,
as companhias beneficiadas deixam de repassar aos cofres públicos 7 bilhões de
reais por ano, o equivalente a 84 meses de manutenção da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, ameaçada de fechamento, ou um terço do orçamento anual da
saúde em São Paulo. O Fisco reclama da “distorção”. Não bastasse o incentivo em
si, há sinais de superfaturamento nas notas fiscais emitidas pelos
beneficiários.
A situação provoca um
fenômeno peculiar: um setor econômico de porte gera prejuízo à arrecadação
federal. Segundo a Receita, em 2014, a produção de refrigerantes resultou em um
IPI negativo de 4%. Pela Constituição brasileira, os impostos entre uma etapa e
outra da industrialização não são cumulativos, “compensando-se o que for devido
em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.
Com os dados da Suframa, contata-se que o setor de químicos é sempre o segundo
em restituição de ICMS, apesar de nem sempre ocupar a mesma posição em
pagamento de impostos. No ano passado, foram 140 milhões de reais pagos e 1,167
bilhão recebido. O setor de duas rodas, com mais empregos e maior faturamento,
pagou mais, 155 milhões, e ganhou menos créditos, 365 milhões.
Ainda em 1994, a Procuradoria da Fazenda Nacional alertou que o esquema de créditos tributários resultaria em “enriquecimento ilícito” e “evasão fiscal”. Em resposta a uma ação movida pela Coca-Cola, o órgão afirmou não haver lógica em receber compensações por um imposto nunca pago.
Os maiores produtores de
refrigerantes há anos driblam a Receita e são reembolsados por impostos que
nunca pagaram .
A Recofarma fabrica em Manaus o concentrado da Coca-Cola |
Os subsídios variam de 15 a
20 centavos de real por lata de refrigerante consumida no País. Nas garrafas
de 2 litros, o valor repassado a essas empresas fica entre 45 e 50 centavos.
Entre o que deixa de ingressar no Tesouro e o que sai na forma de incentivos,
cada brasileiro, consuma ou não os produtos das corporações de bebidas, “doa”
35 reais ao ano aos fabricantes. Os principais beneficiados são a Coca-Cola e a
AmBev.
Alexandre Jobim preside a associação das empresas. |
Ou seja, se o industrial
compra o concentrado de refrigerante por 100 reais a uma alíquota de 20%, tem
direito a 20 reais em créditos, que podem ser usados inclusive para abater
dívidas com a União.
Na Zona Franca de Manaus, o IPI é zero, mas os compradores de xarope cobram o crédito em cima da alíquota que incide sobre o produto fabricado em outras regiões. O resultado é que a tributação brasileira sobre refrigerantes, baixa em relação à de outros países, torna-se ainda menor.
A principal atividade da Coca-Cola, na verdade, é fabricar concentrados. A Recofarma, unidade da transnacional em Manaus, revende o produto intermediário a engarrafadoras que o diluem em água e gás, embalam e se encarregam da distribuição.
Na Zona Franca de Manaus, o IPI é zero, mas os compradores de xarope cobram o crédito em cima da alíquota que incide sobre o produto fabricado em outras regiões. O resultado é que a tributação brasileira sobre refrigerantes, baixa em relação à de outros países, torna-se ainda menor.
A principal atividade da Coca-Cola, na verdade, é fabricar concentrados. A Recofarma, unidade da transnacional em Manaus, revende o produto intermediário a engarrafadoras que o diluem em água e gás, embalam e se encarregam da distribuição.
Empresas beneficiadas no passado por seu pai, Nelson. |
As grandes empresas do setor
começaram na década de 1990 a transferir a produção de concentrados para a Zona
Franca de Manaus. Não satisfeitas com os incentivos “naturais”, passaram a
cobrar o crédito sobre os impostos nunca pagos. A Receita decidiu ingressar na
Justiça para contestar a operação, com sucesso apenas parcial.
Notas fiscais obtidas pela equipe do site “O joio e o trigo” mostram que 1 quilo de concentrado da AmBev e da Coca produzido na Zona Franca custa até 450 reais. O preço mais baixo encontrado foi de 169 reais.
O xarope produzido pela Recofarma em Manaus abastece as engarrafadoras da Coca-Cola no Brasil e também na Argentina, Colômbia, Paraguai, Venezuela, Uruguai e Bolívia. Analisados os dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, conclui-se que o quilo do mesmo produto no mercado externo sai por 22 dólares, em torno de 70 reais.
Notas fiscais obtidas pela equipe do site “O joio e o trigo” mostram que 1 quilo de concentrado da AmBev e da Coca produzido na Zona Franca custa até 450 reais. O preço mais baixo encontrado foi de 169 reais.
O xarope produzido pela Recofarma em Manaus abastece as engarrafadoras da Coca-Cola no Brasil e também na Argentina, Colômbia, Paraguai, Venezuela, Uruguai e Bolívia. Analisados os dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, conclui-se que o quilo do mesmo produto no mercado externo sai por 22 dólares, em torno de 70 reais.
Jereissati: atuação pública em proveito próprio. |
Ou seja, na melhor hipótese,
o preço praticado no mercado interno é duas vezes maior. Na pior, mais de seis
vezes. De acordo com os dados de produção industrial do IBGE, o valor do xarope
produzido no Amazonas em 2015 teve média de preço de 138 reais por litro. Em
São Paulo, o produto saía a 30,47 reais. Em outros estados, a 61 reais.
O caso do chá-mate é ainda mais curioso. O quilo da erva in natura custa de 10 a 15 reais. A produção é totalmente concentrada no Sul do País. E a fábrica do Matte Leão, que a Coca comprou na década passada, fica em Fernandes Pinheiro, a oeste de Curitiba. Uma das notas fiscais contabiliza, porém, o valor de 351 reais do quilo enviado de Manaus de volta à Região Sul. Uma majoração que varia de 2.340% a 3.510%.
As maiores empresas de concentrados respondem por menos de 1% da mão de obra empregada na Zona Franca de Manaus, mas detém de 12% a 13% do faturamento. O setor de químicos, dominado pela produção dos xaropes, é, de longe, o que mais expandiu sua receita desde a década de 1990.
O caso do chá-mate é ainda mais curioso. O quilo da erva in natura custa de 10 a 15 reais. A produção é totalmente concentrada no Sul do País. E a fábrica do Matte Leão, que a Coca comprou na década passada, fica em Fernandes Pinheiro, a oeste de Curitiba. Uma das notas fiscais contabiliza, porém, o valor de 351 reais do quilo enviado de Manaus de volta à Região Sul. Uma majoração que varia de 2.340% a 3.510%.
As maiores empresas de concentrados respondem por menos de 1% da mão de obra empregada na Zona Franca de Manaus, mas detém de 12% a 13% do faturamento. O setor de químicos, dominado pela produção dos xaropes, é, de longe, o que mais expandiu sua receita desde a década de 1990.
Enquanto o número de
trabalhadores se multiplicou por dez entre 1988 e 2013, o ganho em dólares
aumentou 200 vezes. Segundo levantamento da Superintendência da Zona Franca de
Manaus, havia 2,66 mil funcionários no setor químico em 2016, ante 29 mil no de
eletroeletrônicos e 13 mil no de duas rodas.
A Recofarma tem 175 funcionários, segundo o levantamento mais recente oferecido pela Suframa. A Arosuco emprega 142 pessoas.
A Recofarma tem 175 funcionários, segundo o levantamento mais recente oferecido pela Suframa. A Arosuco emprega 142 pessoas.
Entra vento, sai dinheiro. Na Zona Franca, os produtores não pagam certos tributos, mas têm direito à restituição. |
Ainda em 1994, a Procuradoria da Fazenda Nacional alertou que o esquema de créditos tributários resultaria em “enriquecimento ilícito” e “evasão fiscal”. Em resposta a uma ação movida pela Coca-Cola, o órgão afirmou não haver lógica em receber compensações por um imposto nunca pago.
A operação na Zona Franca de
Manaus estimula uma curiosa situação: o setor empresarial passou a defender
impostos mais altos, pois quanto maior a alíquota, maior o crédito. Em 1997, o
jornal Folha de S.Paulo noticiou que o então governador do Ceará, Tasso
Jereissati, pressionou o Ministério da Fazenda a reverter a decisão de zerar a
cobrança de IPI sobre os concentrados. O tempo passou, nada mudou.
Mombelli, da Receita, fala em distorção. |
Documento obtido pela
reportagem via Lei de Acesso à Informação mostra que o hoje senador usou o
cargo público para obter benefícios como empresário. Segundo maior engarrafador
de produtos da Coca-Cola no Brasil e dono de um patrimônio declarado de 389
milhões de reais, Jereissati intermediou uma reunião entre o presidente da
multinacional na América Latina, Brian Smith, e o então ministro da Fazenda,
Guido Mantega.
O encontro ocorreu às 15 horas de 26 de agosto de 2008, período no qual tramitava uma medida provisória para rever os impostos sobre bebidas não alcoólicas. Naquele momento, os produtores regionais conseguiram uma vitória no Congresso para mudar o regime de tributação, que favorecia as grandes do setor.
Três dias depois de sancionada a Lei nº 11.727, foi editada, no entanto, uma medida provisória que basicamente restabelecia a situação anterior. Não se trata de uma exceção. Ao longo das décadas, foram várias as decisões repentinas dos governos em favor da Coca-Cola e da AmBev.
O encontro ocorreu às 15 horas de 26 de agosto de 2008, período no qual tramitava uma medida provisória para rever os impostos sobre bebidas não alcoólicas. Naquele momento, os produtores regionais conseguiram uma vitória no Congresso para mudar o regime de tributação, que favorecia as grandes do setor.
Três dias depois de sancionada a Lei nº 11.727, foi editada, no entanto, uma medida provisória que basicamente restabelecia a situação anterior. Não se trata de uma exceção. Ao longo das décadas, foram várias as decisões repentinas dos governos em favor da Coca-Cola e da AmBev.
Nem todos os industriais
ganham. A Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil foi criada na
década passada para contestar a tributação incidente sobre o setor, vista como
benéfica às grandes empresas. Do outro lado está a Associação Brasileira das
Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), que declara
representar as companhias responsáveis por 93% do faturamento do segmento.
“As grandes corporações falam
que são mais eficientes. Não, elas não são mais eficientes. São, isto sim, mais
eficientes na hora de criar, de manipular a legislação brasileira, a
tributária”, acusa Fernando Bairros, presidente da Afrebras.
A Abir nega que a operação da Zona Franca de Manaus beneficie apenas a Coca-Cola e a AmBev. Qualquer empresa, alega a associação, pode se valer dos incentivos. É necessário, porém, não perder de vista certas especificidades da operação. Primeiro, buscar o insumo em Manaus e levar para o Sul ou o Sudeste, onde está a maior parte das fábricas, tem um custo. Segundo, como há crédito a ser cobrado sobre o IPI, quem compra mais pede mais.
E pode mais. É possível que esses créditos beneficiem ligeiramente um pequeno produtor, mas, no caso dos grandes, funcionam como um incentivo bilionário. Por conta da margem de ganhos que ele estabelece, é possível rebaixar preços e prejudicar a concorrência. Ou gastar mais em publicidade para aumentar a participação de mercado. Ou investir na compra de espaços nas prateleiras dos supermercados e obter uma vantagem competitiva.
A Abir nega que a operação da Zona Franca de Manaus beneficie apenas a Coca-Cola e a AmBev. Qualquer empresa, alega a associação, pode se valer dos incentivos. É necessário, porém, não perder de vista certas especificidades da operação. Primeiro, buscar o insumo em Manaus e levar para o Sul ou o Sudeste, onde está a maior parte das fábricas, tem um custo. Segundo, como há crédito a ser cobrado sobre o IPI, quem compra mais pede mais.
E pode mais. É possível que esses créditos beneficiem ligeiramente um pequeno produtor, mas, no caso dos grandes, funcionam como um incentivo bilionário. Por conta da margem de ganhos que ele estabelece, é possível rebaixar preços e prejudicar a concorrência. Ou gastar mais em publicidade para aumentar a participação de mercado. Ou investir na compra de espaços nas prateleiras dos supermercados e obter uma vantagem competitiva.
Segundo a Afrebras, em 1960
havia 892 fabricantes de refrigerantes no Brasil. No ano retrasado, sobravam
235. Em 2000, as pequenas indústrias produziam 2,72 bilhões de litros. Quinze
anos depois, o volume caiu para 1,04 bilhão. No mesmo período, que coincide com
o ápice dos créditos da Zona Franca de Manaus, as grandes companhias saltaram
de 5,78 bilhões para 13,86 bilhões de litros, segundo a entidade.
O debate poderia ter tomado um rumo diferente 20 anos atrás. Em 1998, a vantagem tributária da Coca-Cola foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal. “Não há por onde divergir. A Constituição é muito clara”, diz Ilmar Galvão, ex-ministro da Corte, hoje com 84 anos, relator do recurso movido pela maior fabricante de refrigerantes do mundo. “O Tribunal se deixou levar pelo voto do ministro Nelson Jobim. Fiquei vencido. Sozinho. Vencido, mas não convencido, porque o Tribunal errou.”
O debate poderia ter tomado um rumo diferente 20 anos atrás. Em 1998, a vantagem tributária da Coca-Cola foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal. “Não há por onde divergir. A Constituição é muito clara”, diz Ilmar Galvão, ex-ministro da Corte, hoje com 84 anos, relator do recurso movido pela maior fabricante de refrigerantes do mundo. “O Tribunal se deixou levar pelo voto do ministro Nelson Jobim. Fiquei vencido. Sozinho. Vencido, mas não convencido, porque o Tribunal errou.”
obim chegara à Corte havia
pouco do Ministério da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. Ele levou ao STF
uma visão empresarial da pendência, deixando em segundo plano a Constituição.
“Sei da existência de virtual conflito entre a Fazenda e os produtores de
Coca-Cola quanto às margens.
Segundo informações, os produtores de xarope teriam aumentado o seu valor para (o fim de) obter maior resultado de isenção.” O ministro comentou a suspeita de superfaturamento, mas, em vez de dar fim ao esquema, comandou um voto que o consolidou.
Galvão até hoje lamenta a decisão. “Quando o Jobim foi ministro da Justiça, houve uma confusão entre a Coca-Cola e o guaraná. A Coca-Cola botou o xarope para ser feito na Zona Franca. O guaraná, a fruta, é do Amazonas. Deu-se uma polêmica entre eles e Jobim ficou com aquilo na cabeça.”
Segundo informações, os produtores de xarope teriam aumentado o seu valor para (o fim de) obter maior resultado de isenção.” O ministro comentou a suspeita de superfaturamento, mas, em vez de dar fim ao esquema, comandou um voto que o consolidou.
Galvão até hoje lamenta a decisão. “Quando o Jobim foi ministro da Justiça, houve uma confusão entre a Coca-Cola e o guaraná. A Coca-Cola botou o xarope para ser feito na Zona Franca. O guaraná, a fruta, é do Amazonas. Deu-se uma polêmica entre eles e Jobim ficou com aquilo na cabeça.”
Jobim integra atualmente o
conselho consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco),
mantido pela Coca-Cola e a AmBev. O ex-ministro recusou-se a conceder
entrevista.
Seu filho, Alexandre Kruel Jobim, preside desde 2015 a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), encabeçada pelas duas gigantes do setor. Recentemente, afirmou que o setor sofre bullying.
Seu filho, Alexandre Kruel Jobim, preside desde 2015 a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir), encabeçada pelas duas gigantes do setor. Recentemente, afirmou que o setor sofre bullying.
Após a saída de Jobim da
Corte, o Supremo mudou ligeiramente o entendimento sobre o caso, mas não há
consenso entre os ministros sobre como tratar a questão, o que se reflete
também nas decisões de instâncias inferiores.
No fim de outubro deste ano, a Receita deu mais um passo na tentativa de frear a perda de arrecadação. Foi emitida uma interpretação de que as empresas têm produzido na Zona Franca um kit de concentrado e não o concentrado em si.
No fim de outubro deste ano, a Receita deu mais um passo na tentativa de frear a perda de arrecadação. Foi emitida uma interpretação de que as empresas têm produzido na Zona Franca um kit de concentrado e não o concentrado em si.
Dessa forma, o Leão evitaria
que o setor privado pudesse cobrar o ressarcimento. “Não há como deixar de
citar que há uma distorção no setor de bebidas no que diz respeito ao extrato”,
disse o coordenador-geral de Tributação da Receita, Fernando Mombelli, durante
recente audiência pública na Câmara dos Deputados. Qualquer elevação de
impostos sem corrigir esse problema, afirmou Mombelli, seria inútil, pois
acabaria compensado pelos créditos tributários.
A Coca-Cola e a AmBev
informaram que a Abir emitiria um posicionamento sobre a discussão. A
associação, por sua vez, comentou genericamente a situação, e não justificou a
diferença de valor entre o concentrado vendido ao mercado interno e aquele
exportado.
Jereissati ignorou os pedidos de entrevista. A secretária de Guido Mantega informou que o ex-ministro passa por problemas pessoais e não teria condições de responder às perguntas.
Jereissati ignorou os pedidos de entrevista. A secretária de Guido Mantega informou que o ex-ministro passa por problemas pessoais e não teria condições de responder às perguntas.
As informações são dos
repórteres João Peres e Moriti Neto, de Carta Capital
Edição da Agência Baluarte
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