domingo, 26 de novembro de 2017
Especialistas rebatem
relatório do Banco Mundial que prega o fim do ensino superior gratuito
“O que está em jogo é
um duplo assalto: a desfiguração do ensino superior público brasileiro,
onde se produz ciência nesse país, e a transformação em um sistema totalmente
comandado pelos grandes monopólios das universidades privadas lucrativas”,
enfatizou o professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC
(UFABC), Wilson Mesquita de Almeida. Ele está falando do recém-lançado relatório
do Banco Mundial, que sugere a adoção de um sistema semelhante ao Fundo de
Financiamento Estudantil (Fies) nas universidades públicas, com o fim
da gratuidade e criação de bolsas para quem não pode pagar.
O Fies é o programa
do Ministério da Educação (MEC) que financia cursos superiores não gratuitos e
com avaliação positiva no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
(Sinaes).
O relatório foi
encomendado ao Banco Mundial pelo ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy, e
entregue ao atual ministro Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo
Oliveira, na última terça-feira (21). O documento analisa oito áreas do gasto
público no Brasil, e afirma que, nas últimas duas décadas, ele aumentou de
forma “consistente”, colocando em risco a sustentabilidade fiscal do
país.
Especialistas,
entretanto, rebatem os argumentos apontados pelo relatório. Uma pesquisa do
Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis
(Fonaprace), publicada em 2016, revela que, em 2014, 51,4% dos estudantes de
graduação nas universidades públicas federais pertenciam a famílias com renda
bruta de até três salários mínimos. O estudo do fórum revela ainda que apenas
10,6% integravam famílias com renda bruta superior a dez salários mínimos.
“Nos últimos anos,
nós tivemos uma mudança bastante considerável no perfil dos alunos no ensino
superior brasileiro. Isso porque, mesmo com a gratuidade, houve uma série de
políticas que fizeram aumentar o número de alunos nas universidades públicas e
privadas”, disse o professor de economia da Universidade Federal Fluminense
(UFF), Fábio Domingues Waltenberg.
Outra pesquisa
lançada no ano passado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes) mostrou que a participação de estudantes
de famílias cuja renda bruta está entre nove e dez salários mínimos caiu no
período de 2010 e 2014 de 6,57% para 2,96%. Já os alunos de famílias com renda
bruta acima de dez salários mínimos caíram no mesmo período de 16,72% para
10,6%.
Além da maior
presença de estudantes de classes econômicas menos privilegiadas, o estudo
identificou um aumento da participação de alunos autodeclarados negros e
pardos, que representam 47,57% dos entrevistados. Em 1997, 2,2% dos pardos e
1,8% dos negros entre 18 e 24 anos cursavam ou já haviam concluído um curso de
graduação no país.
“Há diversas razões
que podem ser apontadas nessa conta. Qualquer família de classe média entende e
espera que seu filho entre na universidade. E isso não é obvio para as famílias
mais pobres. Então mesmo que a pessoa tenha a capacidade, não faz parte das
aspirações dessa classe”, disse Fábio, que continuou: “Para reverter isso, não
basta investir no público e gratuito, tem que criar políticas de manutenção
dessas pessoas na universidade. E conscientizar a população de que a
universidade é para todos”.
“Vivemos em um país
grande e com diferenças regionais ainda marcantes. Quando eu pego dados da
região Nordeste, Norte e Centro-Oeste, o perfil social é mais heterogêneo
socialmente. O Banco Mundial pega uma pequena parcela dos estudantes e
generaliza para o conjunto dos alunos. Isso é um erro lógico primário”,
acrescentou.
Entre os países mais
ricos, há os que não cobram nada dos estudantes em qualquer nível do ensino
superior, como os nórdicos (Noruega, Dinamarca, Finlândia e Suécia) e os
eslavos (Eslováquia e Eslovênia), e outros, onde mesmo nas instituições
públicas os custos do ensino superior são de milhares de dólares por ano, como
nos Estados Unidos e no Reino Unido.
“Na Suécia, eles não
pagam a universidade. E, além disso, os alunos recebem uma bolsa que serve para
pagar transporte e moradia. Então você entende a educação como um investimento
do governo, e não um gasto. Essa é a diferença na concepção desse relatório: a
nossa premissa é outra”, disse Fábio.
Arabela Campos é
professora de sociologia da educação na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, e doutora pela Universidade de Londres, no Reino Unido. Ela conta que, no
ano passado, esteve nos Estados Unidos fazendo um estudo sobre o ensino superior
e políticas de inclusão de estudantes, principalmente negros norte-americanos,
a fim de oferecer uma comparação com o modelo brasileiro.
“Nos EUA, houve um
processo de concentração de renda muito profundo nas últimas décadas, e os
resultados disso foram uma matrícula cada vez mais elevada; serviços oferecidos
nos campus da universidade supérfluos; e uma contração de dívidas imensas por
parte daqueles que precisam fazer empréstimo para pagar os estudos, o que
compromete o futuro de milhares de norte-americanos”, disse.
Ela explicou que
mesmo nas universidades públicas - que no caso dos EUA também são pagas -, há
uma tendência em selecionar cada vez mais alunos com alto poder aquisitivo, já
que os recursos públicos estão encolhendo, e em períodos de crise, são ainda
menores.
“A universidade
pública de Illinois, por exemplo, uma das mais importantes do país, procura
atrair estudantes estrangeiros – em 2016 eles correspondiam a 22% das
matrículas -, principalmente asiáticos. Volta e meia você vê um jovem de 17
anos com uma Mercedes Benz vermelha circulando no campus. É gritante a
ostentação. E o resultado disso é uma minoria cada vez mais rara. Então nós
temos que conhecer essa realidade e pensar sobre, para saber se é isso que
queremos para o nosso país”, disse Arabela que estudou a vida toda na UFRS.
O professor de
economia da UFF, Fábio, argumenta que o Banco Mundial trabalha em cima da
lógica de um “orçamento fixo”, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
aprovada ainda este ano pelo governo de Michel Temer (PMDB) que limita os
gastos públicos por 20 anos.
“Nesse caso, entra a
questão do estado mínimo, da diminuição gradativa das obrigações e deveres do
Estado brasileiro. E com a aprovação da PEC 55 vem uma demanda grande por
cortes cada vez maiores de recursos do setor público. Se permitirmos isso,
daqui a pouco nós vamos ver serviços essenciais, que já estão sofrendo os
efeitos dessa emenda, sendo cortados também”, alertou a reitora da Unifesp,
Soraya Smaili.
“É o pensamento de
que nós temos um orçamento fixo e precisamos retirar de alguma coisa para
colocar em outra. Aí entra o argumento de que precisamos tirar do ensino
superior para investir no ensino básico”, completou Fábio.
Apesar de ainda
existir grande disparidade entre o gasto com aluno no ensino básico e superior,
dados do Inep/MEC mostram que desde 2000 a diferença do investimento reduziu.
Os últimos relatórios referentes a 2014 indicam que enquanto foram destinados
R$ 21.875 (aumento de 6,6%) para cada estudante no ensino superior ao ano, os
alunos da educação básica - infantil e fundamental - custaram R$ 5.935 (aumento
de 206%).
De acordo com o
último relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) lançado este ano, no Brasil são investidos, por ano e aluno do ensino
superior público, apenas US$ 3.439, enquanto no Chile são US$ 4.325, na França,
US$ 9.825, Alemanha, US$ 12.826, Coreia do Sul, US$ 8.159, e quando se tratam
dos países nórdicos europeus, como Noruega e Dinamarca, o patamar fica acima de
US$ 20 mil.
“É claro que
precisamos melhorar muito ainda, mas é importante frisar que universidade não é
só a docência, a boa universidade dá ensino em diferentes níveis e pesquisas.
E, além disso, você tem toda a retribuição para a sociedade. É natural que o
gasto seja maior. Isso é assim no mundo todo”, comentou Fábio, completando:
“Precisamos encontrar recursos para manter o ensino superior e aumentar o gasto
com educação básica. A lógica desse relatório e do governo atual é de não
gastar nenhum centavo a mais em educação”.
“Toda universidade
pública possui custos com hospitais [que atende o entorno local],
restaurantes universitários com descontos ou subsídios para alunos de
baixa renda - os ditos "bandejões" ou RUs - museus, rádios,
salários de aposentados e laboratórios para pesquisa. As privadas no
Brasil, predominantemente voltadas para o lucro, não fazem pesquisa, ou
seja, produção de conhecimento novo. Inovações, vacinas, dentre outras
descobertas que auxiliarão a sociedade, são desenvolvidas, sobretudo, nas
universidades públicas, que o Banco Mundial quer desfigurar”, completou Wilson.
“O efeito de
mercantilização seria enorme. A prioridade seria destinar recursos para cursos
baratos e com retorno imediato. Sendo assim, idiomas raros e faculdades de
arte, para quê? E isso é importante a longo prazo. Além do mais, quem garante
que se reduzirem os recursos com educação superior, eles irão para educação
básica?”, questionou Fábio.
“O Banco Mundial, por
meio de consultores e analistas, vem tentando fazer isso desde a ditadura
militar, fim dos anos 1960 para 1970, justamente quando começam a
construir o que eu chamo de ‘ensino superior privado lucrativo’”, disse o
professor Wilson Mesquita de Almeida.
O pesquisador
investigou a privatização e a concentração de capital no ensino superior. Em
seu livro Prouni e o ensino superior privado lucrativo em São Paulo:
uma análise sociológica, ele faz uma análise do universo do ensino superior
privado brasileiro, que transita de pequenas faculdades isoladas para grandes
universidades, até chegar aos fundos de investimento, com ações altamente
cotadas na Bolsa de Valores.
“São instituições
voltadas para obter lucro com a educação. Fato bem diferente do que ocorre nos
países desenvolvidos, onde não houve estímulo estatal para a existência de
empresários donos de universidades”, pontua.
O que acontece,
segundo ele, não é nada diferente do que ocorre no capitalismo brasileiro: as
universidades ligadas aos grandes grupos educacionais – controlados pelos
fundos de investimento – dispõem de poder financeiro para comprar universidades
grandes, médias e pequenas, concentrando o mercado.
“Resultado disso: a
proporção caminha em direção a quase 80% das vagas da graduação brasileira
sendo oriundas do setor privado, já que esse setor é formado em sua quase
totalidade por instituições lucrativas, composto por uma minoria de
instituições comunitárias e fundações privadas, com caráter público [como a
PUC]”, disse.
A reitora da
Universidade Federal de São Paulo, Soraya Smaili, fez coro ao professor
acrescentando: “Existem hoje grandes conglomerados de universidades que são
quase cartéis. O grupo Kroton, que se juntou à marca Anhanguera, e comanda
outras tantas menores, tem 1,5 milhão de estudantes. E a universidade pública
com esse perfil sócio-econômico atrapalha muito o negócio dessas instituições
privadas. Porque são recursos que, eventualmente, estariam de olho nesse filão do
mercado e não conseguem acessar. Além disso, apesar de todas as críticas, a
universidade pública ainda é muito procurada em qualidade. Todos os membros da
elite brasileira se formaram na pública, e não é à toa”, disse.
Os especialistas vão além,
e sugerem, no lugar do que foi proposto pelo relatório do Banco Mundial, uma
reforma no sistema tributário do país.
Segundo pesquisas do
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a parcela assalariada do país é
responsável, atualmente, por 71,38% do montante de impostos, contribuições e
taxas. Só o pagamento de impostos consome 32% da renda dos 10% mais pobres,
enquanto sobre os 10% mais ricos, são 21%, e sobre os chamados super-ricos, que
representam 0,05% da população, 6,7% da renda.
Enquanto isso, a predominante fonte de renda dos milionários brasileiros, os lucros e dividendos, são isentos de tributação e somam um montante de R$ 231 bilhões anuais, de acordo com dados da Receita Federal. Entre os países da OCDE, além do Brasil somente a Estônia oferece esse tipo de isenção tributária ao topo da pirâmide. Nos países mais desenvolvidos, segundo a organização, a tributação sobre o patrimônio e a renda corresponde a cerca de 2/3 da arrecadação.
Só essa conclusão
viola o princípio da progressividade tributária, segundo o qual o nível de
tributação deve crescer com a renda. A conclusão é de um artigo publicado em
dezembro do ano passado pelo Centro Internacional de Políticas para o
Crescimento Inclusivo (IPC-IG), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD).
Diante deste quadro,
especialistas da área econômica indicam que o combate à concentração de renda
deve estar aliado à realização de uma reforma tributária que permita tratamento
isonômico aos contribuintes.
“Uma família pobre
paga 40% de imposto em luz, e não importa se ela mora em uma casa pequena ou em
um palacete. Eu acho que essa é a discussão mais importante. As grandes
fortunas são muito protegidas”, completou Arabela.
“Quando você lê ou
ouve as pessoas dizendo que é preciso acabar com a gratuidade do ensino
superior público porque é regressivo, você apela para algo poderoso, que é a
justiça social. O que me incomoda é que esse argumento aparece nessa instância,
mas é esquecido em outras, como o nosso sistema tributário que é ruim, e pesa
mais para as camadas mais pobres da população. Ou seja, existe uma série de
outros mecanismos que poderia aumentar o nosso orçamento. E por que faríamos
isso? Porque estamos preocupados como justiça social, não é?”, questionou
Fábio, que vê a reforma tributária como condição primordial para discutir
qualquer mudança na educação.
Exemplos nos EUA
mostram como mudança pode elitizar e restringir o acesso à educação.
Estudantes fazem protesto em universidade pública. "Você entende a educação como um investimento do governo, e não um gasto", diz especialista. |
Na educação, o
relatório aponta que as despesas com universidades federais “equivalem a
um subsídio regressivo à parcela mais rica da população brasileira”. “O Governo
Federal gasta aproximadamente 0,7% do PIB com universidades federais. A análise
de eficiência indica que aproximadamente um quarto desse dinheiro é
desperdiçado. Isso também se reflete no fato que os níveis de gastos por aluno
nas universidades públicas são de duas a cinco vezes maior que o gasto por
aluno em universidade privadas. A limitação do financiamento a cada
universidade com base no número de estudantes geraria uma economia de
aproximadamente 0,3% do PIB”, diz o documento, continuando: “Além disso, embora
os estudantes de universidades federais não paguem por sua educação, mais de
65% deles pertencem aos 40% mais ricos da população”.
Exemplos
Internacionais
“As políticas de ação
afirmativa acolhem estudantes de grupos subrepresentados, e a presença deles é
muito importante para oxigenar a universidade, para que ela pulse e represente
a nossa sociedade como ela é”, finalizou.
O teto de gastos
"A universidade pública com esse perfil sócio-econômico atrapalha muito o negócio dessas instituições privadas", disse a reitora da Unifesp. |
As instituições
privadas
“O primeiro capítulo
do meu livro mostra como essas universidades isoladas nos anos 1970 foram
transformadas em grandes grupos hoje [Estácio, Kroton, etc] com apoio e
recurso estatal e com ajuda dos consultores do Banco Mundial”, completou
Wilson.
Sistema tributário
“Os ricos devem
pagar, sim, pelas universidades públicas, mas não através da mensalidade, e sim
por um sistema tributário mais justo. A mensalidade apenas não basta. Só ela
não seria suficiente para manter tudo que a universidade agrega”, disse
Arabela.
Enquanto isso, a predominante fonte de renda dos milionários brasileiros, os lucros e dividendos, são isentos de tributação e somam um montante de R$ 231 bilhões anuais, de acordo com dados da Receita Federal. Entre os países da OCDE, além do Brasil somente a Estônia oferece esse tipo de isenção tributária ao topo da pirâmide. Nos países mais desenvolvidos, segundo a organização, a tributação sobre o patrimônio e a renda corresponde a cerca de 2/3 da arrecadação.
As informações são da
repórter Rebeca Letieri
Edição de Fernando
Atallaia
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