quarta-feira, 17 de agosto de 2016
Patriarca de uma dinastia de cartolas, João Havelange morre no Rio
Por mais de quatro décadas, ele ditou os rumos do futebol nativo e mundial, mas viu o prestígio ruir em meio a escândalos de corrupção.
 
Patriarca de uma dinastia de cartolas que ditou os rumos do futebol nativo e mundial por mais de quatro décadas, o brasileiro João Havelange morreu nesta terça-feira 16, no Rio de Janeiro, aos 100 anos. Estava internado no Hospital Samaritano com um quadro de pneumonia, que havia o conduzido a sucessivas internações nos últimos tempos. 

Filho de um comerciante belga que fez fortuna na capital fluminense, Havelange chegou a ser atleta olímpico de natação e polo aquático, mas sempre atuou com mais desenvoltura nos bastidores da cartolagem. 

Por 18 anos ininterruptos, presidiu a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que à época congregava diversas modalidades esportivas, e não apenas o futebol. Deixou o posto em 1974, ao eleger-se chefe da Fifa. Entronizou-se no cargo por 24 anos, não sem antes preparar a sucessão para o suíço Joseph Blatter, um de seus mais denodados pupilos. 
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Filho de um comerciante belga que fez fortuna na capital fluminense, Havelange chegou a ser atleta olímpico de natação e polo aquático, mas sempre atuou com mais desenvoltura nos bastidores da cartolagem. 
Às vésperas da Copa da Alemanha Ocidental, Havelange aplicou um golpe de mestre no desafiante, Stanley Rous, lendário presidente da entidade. Eurocêntrico, o lorde britânico dava pouca atenção ao futebol praticado nos países periféricos. Havelange percebeu a falta de interlocução do dirigente com as federações menores, como as de nações africanas, e conseguiu amealhar votos para derrotar Rous nas eleições da Fifa. 

No livro Foul! (Falta!, em inglês), o jornalista britânico Andrew Jennings, que dedicou a carreira a revelar o jogo sujo nos bastidores da Fifa, demonstra como Havelange usou a seleção brasileira para desequilibrar a disputa. O então presidente da CBD levava a equipe tricampeã no México, com Pelé de garoto propaganda, para disputar amistosos em "países amigos" e deixava a renda integralmente aos organizadores da partida. 

Para sustentar a campanha de Havelange à Fifa, a CBD fechou o ano de 1974 com um déficit semelhante ao custo da sede da entidade, levantada pelo dirigente em 1966 e que carregava seu nome. 

Não é tudo. De olho nos vultosos contratos de marketing que o futebol poderia alavancar, Horst Dassler, diretor da Adidas, se dispôs a ajudar o cartola brasileiro. Segundo Jennings, Dassler teria enviado envelopes com dinheiro aos delegados indecisos para que votassem por Havelange. 

Apesar das sucessivas denúncias de corrupção que emergiam de tempos em tempos, Havelange só viu seu prestígio ruir quando não estava mais no comando da Fifa, ao menos formalmente. Na companhia de seu ex-genro, Ricardo Teixeira, que chefiou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) de 1989 a 2012, foi surpreendido por uma investigação conduzida por autoridades suíças. A dupla viu-se forçada a admitir, em juízo, o recebimento de propinas , e a devolver parte dos valores recebidos.

A trama é detalhada no livro O Lado Sujo do Futebol, lançado pela editora Planeta um mês antes da abertura da Copa de 2014. Os autores são jornalistas experientes, embora sem trajetória na cobertura esportiva. Trabalharam juntos, de 2011 a 2012, em uma série de reportagens para TV Record sobre os desmandos de Teixeira e Havelange. São eles Luiz Carlos Azenha, Leandro Cipoloni, Tony Chastinet e Amauri Ribeiro Jr., este último autor do livro Privataria Tucana (Geração Editorial).

A obra de quase 400 páginas detalha como os cartolas transformaram o futebol em um negócio lucrativo, capaz de gerar recursos excedentes para assegurar o enriquecimento próprio e sua perpetuação no poder. Revela ainda como os dirigentes conseguiram escapar da maioria das denúncias, amparados na leniência do Judiciário e na intervenção amiga de parlamentares ligados a federações esportivas, a Bancada da Bola. 

Teixeira e Havelange estavam enredados em graves denúncias de corrupção na Fifa desde 2010. Em um programa da rede britânica BBC, Jennings revelou como a dupla recebeu propina da ISL, empresa que intermediava os contratos de televisão das Copas do Mundo. 

A ISL pertencia a Dassler, antigo parceiro da Adidas, que ensinou o brasileiro a lucrar com os milionários pacotes de patrocínio e repartir as “comissões” entre dirigentes esportivos. O caso despertou a atenção do promotor suíço Thomas Hildebrand. Ele conseguiu furar o bloqueio de diferentes paraísos fiscais e perfazer o caminho da propina. 

De 1992 a 1997, a ISL fez transferências totais de 9,5 milhões de dólares à Sanud, empresa sediada em Liechtenstein e sócia, no Brasil, da RLJ Participações, de propriedade de Teixeira e sua primeira esposa, Lúcia Havelange.

O promotor suíço descobriu que a Sanud pertencia a Teixeira, fato que o cartola negou durante a CPI da Nike. A partir de 1998, os repasses da ISL passaram a ser feitos para outra empresa, a Rendfort, também controlada pelo ex-presidente da CBF. Os depósitos na conta da empresa somaram 21,9 milhões de francos suíços. 

Curiosamente, todo o processo foi desencadeado pela própria Fifa, ao cobrar da massa falida da ISL o repasse de um valor pago pela TV Globo pelos direitos de transmissão das copas de 2002 e 2006. 

Em dificuldade financeira, a ISL concedeu um desconto à emissora brasileira na antecipação de uma parcela de 66 milhões de dólares. Mas a ISL quebrou em maio de 2001 sem nunca ter feito o repasse devido à Fifa. Blatter cobrou o débito na Justiça e colaborou para a fritura de Havelange. Executivos ligados à extinta ISL não hesitaram em delatar o esquema. 

Para evitar uma condenação na Suíça, os cartolas brasileiros fecharam um acordo e devolveram parte da propina. Teixeira desembolsou 2,5 milhões de francos suíços. Havelange, por sua vez, pagou 500 mil francos suíços. A punição parece branda, mas pela primeira vez a dupla viu-se obrigada a responder por seus atos na Justiça. 

O ex-genro, Ricardo Teixeira, renunciou ao comando da CBF em 2012. Após um idílico exílio em Boca Ratón, na Flórida, pôde retornar ao Brasil sem ser importunado pelas autoridades. Em 2013, Havelange renunciou à presidência de honra da Fifa, dias antes de um relatório do Comitê de Ética da entidade classificar como “reprovável” a conduta do cartola no caso da ISL e cobrar o ressarcimento dos valores, o que não ocorreu. 

Sucessor e pupilo de Havelange na Fifa, Blatter viu-se forçado a renunciar ao comando da Fifa em 2015, quando as autoridades americanas passaram a investigar um multimilionário esquema de corrupção instalado na entidade, a envolver, inclusive, a suposta compra de votos para a escolha de países-sede da Copa de Mundo. 

Os escândalos fizeram seu prestígio ruir. Ainda antes de ficar com a saúde debilitada, passou a evitar os holofotes e recusar convites para eventos públicos. Em 2015, viu seu nome desaparecer do estádio olímpico erguido para o Pan de 2007. O Botafogo decidiu rebatizar a arena para homenagear Nilton Santos, bicampeão mundial de futebol. Dona do espaço, a prefeitura carioca acatou a medida.

No dia de sua morte, o Comitê Olímpico Internacional adotou postura indiferente em relação a Havelange, membro da organização por mais de cinquenta anos. A entidade se recusou a colocar a sua bandeira oficial, com os aros olímpicos, a meio mastro. Aceitou, porém, um pedido da Rio 2016 para que a bandeira do Brasil permanecesse assim nas instalações dos Jogos.

AS INFORMAÇÕES SÃO DA CARTA CAPITAL
EDIÇÃO DA AGÊNCIA BALUARTE 

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