quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO
(Roland Barthes): A necessidade desse livro se apoia na seguinte consideração: o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão.
(Roland Barthes): A necessidade desse livro se apoia na seguinte consideração: o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão.
“Encontro pela vida milhões de corpos;
desses milhões posso desejar centenas;
mas dessas centenas, amo apenas um. O
outro pelo qual estou apaixonado me
designa e especialidade do meu desejo.
Esta escolha, tão rigorosa que só retém
o Único, estabelece, por assim dizer, a
diferença entre a transferência
analítica e a transferência amorosa; uma
é universal, a outra é específica. Foram
precisos muitos acasos, muitas
coincidências surpreendentes (e talvez
muitas procuras), para que eu encontre a
Imagem que, entre mil, convém ao meu
desejo. Eis o grande enigma do qual
nunca terei a solução: por que desejo
esse? Por que o desejo por tanto tempo,
languidamente? É ele inteiro que desejo
(uma silhueta, uma forma, uma
aparência)? Ou apenas uma parte desse
corpo? E, nesse caso, o que, nesse corpo
amado, tem a tendência de fetiche em
mim? Que porção, talvez incrivelmente
pequena, que acidente? O corte de uma
unha, um dente um pouquinho quebrado
obliquamente, uma mecha, uma maneira de
fumar afastando os dedos para falar? De
todos esses relevos do corpo
tenho vontade de dizer que são
adoráveis. Adorável quer
dizer: este é o meu desejo, tanto que
único: “É isso! Exatamente isso (que
amo)!” No entanto, quanto mais
experimento a especialidade do meu
desejo, menos posso nomeá-la; à precisão
do alvo corresponde um estremecimento do
nome; o próprio do desejo não pode
produzir um impróprio do enunciado:
deste fracasso da linguagem, só resta um
vestígio: a palavra “adorável” (a boa
tradução de “adorável” seria ipse
latino: é ele, ele mesmo em pessoa)."
"Eu sofro a tua ausência te quero sonho com você para você contra você me responde teu nome é um perfume espalhado."
"Ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém."
"Como termina um amor? - O quê? Termina? Em suma ninguém - exceto os
outros - nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa
coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que
se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade,
de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que
termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa
de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem
brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse
fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito
enamorado) não posso construir até o fim de minha história de amor: sou
o poeta (o recitante apenas do começo); o final dessa história, assim
como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam
romance, narrativa exterior, mítica."
Ajo
sempre – teimo em agir, não importa o que me
digam nem quais sejam meus próprios
desencorajamentos, como se o amor pudesse um dia
me fazer transbordar, como se o Bem Supremo
fosse possível. Daí essa curiosa dialética que
permite que o amor absoluto suceda sem embaraço
ao amor absoluto, como se, através do amor, eu
tivesse acesso a uma outra lógica (o absoluto
não sendo obrigatoriamente o único), a um outro
tempo (de amor em amor vivo instantes
verticais), a uma outra música (esse som sem
memória, sem construção, esquecido daquilo que o
precede e o segue, esse som é em si mesmo
musical). Procuro, começo, tento,
vou mais longe, corro, mas nunca sei que acabo:
não se diz da Fênix que ela morre, mas apenas
que renasce (posso então renascer sem morrer?)
Werther
Benjamin Constant
Ao longo de uma vida, todos os
“fracassos” de amor se parecem
(pudera: procedem todos da mesma
falha). X... e Y... não souberam
(puderam, quiseram) responder ao
meu “pedido”, aderir à minha
“verdade”; não mexeram uma
vírgula do seu sistema; para
mim, um não fez senão repetir o
outro. E, entretanto, X... e
Y... são incomparáveis; é da
diferença entre eles, modelo de
uma
diferença infinitamente reconduzida, que retiro a energia para Benjamin recomeçar. A “mutabilidade perpétua” (in inconstantia constans)
diferença infinitamente reconduzida, que retiro a energia para Benjamin recomeçar. A “mutabilidade perpétua” (in inconstantia constans)
Constant que me anima, longe de esmagar todos aqueles que encontro sob um mesmo tipo funcional (não responder ao meu pedido), desloca com violência seu falso ponto em comum: a errância não iguala, faz mudar de cor: o que volta é a nuance. É assim que vou até o fim da tapeçaria, de uma nuance a outra (a nuance é esse último estado da cor que não pode ser nomeado; a nuance é o Intratável).
R.S.B.: conversa.
Roland Barthes
Fragmentos de um discurso amoroso
Tradução: Hortênsia dos Santos
Francisco Alves Editora
Rio de Janeiro, 1989
Fragmentos de um discurso amoroso
Tradução: Hortênsia dos Santos
Francisco Alves Editora
Rio de Janeiro, 1989
"(...) Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências
surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem
que, entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual
nunca terei a solução: por que desejo Esse? Por que o desejo por tanto
tempo, languidamente?... "
"Tento recordar teu
rosto, nome. Curioso, como às vezes nos escapam os traços da pessoa
amada. Situo-te num passado já distante. Não te imagino num presente.De
ti resta-me o que foste comigo.E foste - me ternura e descoberta do meu
corpo, de minhas mãos até então inábeis que ensinaste a acariciar teus
cabelos, a sentir teu corpo; e ainda descoberta de que a minha voz tinha
um sentido para além de sons mais ou menos indistintos e vagos."
"Ciúme: Sentimento que nasce no amor e que é produzido pelo medo que a pessoa amada prefira um outro."
"Na distância
imprecisa, meu amor, ignoramos de nós sequer a latitude.Contudo,
provavelmente o mesmo sol cobre nossos corpos ávidos de luz e de
acontecer, os mesmo rostos (ou serão outros?) da mesma gente envolvem
nossos passos, os mesmos ruídos, o mesmo bombardear de fatos e de
idéias, a mesma música flutua em nossos cabelos, o mesmo vento nos
impele na busca de horizontes claros e do mar, cheiro de algas
penetrante, doçura do pôr do sol e das tempestades na barra."
"Como
serás tu que imagino mais do que recordo – a memória traz consigo
também o esquecimento, continuando embora memória de gestos repetidos –
com quem te encontras, como pensas, que brisas novas suavizarão teu
sangue inquieto.Na distância imprecisa que o tempo traz recordo
vagamente teu rosto rude e já marcado, a ternura inconsistente e macia
da areia deslizando em nossas mãos."
"Encontro fugidio e
breve foi o nosso. Belo também da beleza que permanece na memória para
além dos dias. Algures tu és, aqui eu sou.Porque imprecisa, a distância
se resolve na certeza vaga de existirmos num como e num onde. Tanto
basta. [pergunta ou afirmação?] Não há passos que nos aproximem no
impreciso e no vago. O nosso reencontro está só na certeza vaga de
existirmos com outros, sob o mesmo sol. Melhor assim."
"Impuro e
desfigurante é o olhar da vontade. Só quando nada cobiçamos, só quando o
nosso olhar nada mais é senão pura observação, é que a alma das coisas,
a sua beleza, se nos revela."
"De amor não falemos.
De que serviria dar nome ao que encerra somente o equívoco? Somos e não
somos sós. E depois ser só não é ser só. Não estamos sós. Temo-nos um
ao outro na distância e na ausência, que são só acidentes e nada de
essencial atingem. Temo-nos no que ficou do fugidio encontro, na ternura
renovada que nos
inventamos ou recriamos. Ou na lembrança."
"[...] A plenitude é pois uma
precipitação: alguma coisa se condensa, abate-se sobre mim, fulmina-me. O
que me repleta assim? Uma totalidade? Não. Alguma coisa que, partindo
da totalidade, vem a excedê-la: uma totalidade sem resto, uma soma sem
exceção, um lugar sem nada ao lado ("minha alma não está apenas repleta,
mas transbordante").
[...] Plenitudes: não são ditas - de modo que, falsamente, a relação amorosa parece reduzir-se a um longo lamento. É que, se não traz conseqüências dizer mal a desgraça, em compensação, relativamente à felicidade, pareceria culpável estragar-lhe a expressão: o eu só discorre ferido; quando estou pleno ou me recordo de assim ter estado, a linguagem me parece pusilânime: sou transportado para fora da linguagem, quer dizer, para fora do medíocre, para fora do geral: "Acontece um encontro que é intolerável, por causa da alegria, e algumas vezes o homem fica reduzido a nada; é o que chamo de transporte. O transporte é a alegria da qual não podemos falar."
[...] Plenitudes: não são ditas - de modo que, falsamente, a relação amorosa parece reduzir-se a um longo lamento. É que, se não traz conseqüências dizer mal a desgraça, em compensação, relativamente à felicidade, pareceria culpável estragar-lhe a expressão: o eu só discorre ferido; quando estou pleno ou me recordo de assim ter estado, a linguagem me parece pusilânime: sou transportado para fora da linguagem, quer dizer, para fora do medíocre, para fora do geral: "Acontece um encontro que é intolerável, por causa da alegria, e algumas vezes o homem fica reduzido a nada; é o que chamo de transporte. O transporte é a alegria da qual não podemos falar."
(Roland Barthes - Fragmentos de um Discurso Amoroso)
Roland Barthes (Cherbourg,
12 de Novembro de 1915 — Paris, 26 de Março de 1980) foi um escritor,
sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês.
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