quarta-feira, 18 de julho de 2012
A poesia da excrescência no olhar de Glauco Mattoso
Leia na íntegra sonetos do poeta brasileiro Glauco Mattoso. Peculiaríssimo, Mattoso dispensa apresentações. Mas em todo caso tratamos de reproduzir neste espaço sua biografia sui generis e a listagem precária de sua vasta obra. Glauco Mattoso é um dos poetas e escritores mais originais da Literatura Brasileira Contemporânea ainda vivo.Vamos ao artista!
SONETO 951 NATAL
Nasci glaucomattoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.
(de As mil e uma línguas)
SONETO INGLÓRIO (RECRIANDO O
SONETO 192 DE PETRARCA)
Revejo, a sós comigo, o meu fracasso,
que pela lei do Além tive por pena.
Amarga-me o sabor, e me envenena,
das trevas, às quais tantos versos faço
Artífice me torno, e meu espaço
não passa do soneto, embora a pena
dedique-se ao louvor de quem tem plena
visão e me espezinhe a cada passo.
Folhagens verdes, flores coloridas
destinam-se aos que podem, rindo, vê-las:
aqueles cujos pés, num par de Adidas,
passeiam-me na língua, enquanto pelas
surradas solas sejam as lambidas
mais ávidas que um olho a ver estrelas.
(de As mil e uma línguas)
SONETO 541 CONTRARIADO
[CC]
[CC]
Por ser o cedo tarde e o tarde cedo;
por ser tarde a manhã e a noite dia;
por ser gostosa a dor, triste a alegria;
por serem ódio amor, coragem medo;
Se o plágio é mais invento que arremedo;
se exprime mais virtude o que vicia;
se nada vale tudo que valia;
se todos já conhecem o segredo;
Por ser duplipensar barroco a língua;
por menos ter aquele que mais quer;
se a falta excede e tanto abunda a míngua;
Por nunca estar o nexo onde estiver,
desdigo o que falei e a vida xingo-a
de morte, se a cegueira é luz qualquer.
por ser tarde a manhã e a noite dia;
por ser gostosa a dor, triste a alegria;
por serem ódio amor, coragem medo;
Se o plágio é mais invento que arremedo;
se exprime mais virtude o que vicia;
se nada vale tudo que valia;
se todos já conhecem o segredo;
Por ser duplipensar barroco a língua;
por menos ter aquele que mais quer;
se a falta excede e tanto abunda a míngua;
Por nunca estar o nexo onde estiver,
desdigo o que falei e a vida xingo-a
de morte, se a cegueira é luz qualquer.
(De Poesia digesta 1974-2004)
Governamental
Tamanho nepotismo se constata
nos quadros do governo, que, bem breve,
nenhum parente vivo fora deve
ficar da mordomia e da mamata!
o genro, a nora, a sogra mais ingrata,
cunhados e sobrinhos, quem se atreve
a demiti-los, mesmo quando em greve
declaram-se ou trabalham sem gravata?
Nenhum apaniguado que se preza
aceita cargo abaixo de chefia,
cartilha em que a família toda reza.
Se alguém a falcatrua denuncia,
chamado é de "invejoso", pois lhe pesa
a culpa de ocupar vaga da tia.
Regimental
Trancada a pauta, nada mais se vota,
enquanto novo acordo não costura
comadre com compadre e não se jura
que vale uma palavra mais que a nota.
Da noite para o dia, ninguém nota
o pacto que, na véspera, fervura
causara no Congresso, e a sinecura
retoma o ramerrão e cobra a cota.
Só serve um regimento a quem protela
"devidas providências" ou apressa
"medidas de interesse" da panela.
Se explodem as denúncias, interessa
mostrar serviço e investigar quem zela,
mas sendo alguém da Casa, o caso cessa.
MANIFESTO COPROFÁGICO
Mierda que te quiero mierda
Garcia Loca
a merda na latrina
daquele bar de esquina
tem cheiro de batina
de botina
de rotina
de oficina gasolina sabatina
e serpentina
bosta com vitamina
cocô com cocaína
merda de mordomia de propina
de hemorróida e purpurina
merda de gente fina
da rua francisca miquelina
da vila leopoldina
de Teresina de santa Catarina
e da argentina
merda comunitária cosmopolita e clandestina
merda métrica palindrômica alexandrina
ó merda com teu mar de urina
com teu céu de fedentina
tu és meu continente terra fecunda onde germina
minha independência minha indisciplina
és avessa foste cagada da vagina
da américa latina
(do Jornal Dobrabil)
Glauco Mattoso: quanto mais escuridão mais luzes de pensamento |
SONETO 750 DA MULHER-MOSCA
Na fresca da varanda, ela se espicha
pelada e se diz mosca, pois se sente
voraz e açucareira, repelente
apenas a alguns machos que não ficha.
Sem ser "mosca de fruta", a qual da bicha
é mais que boa amiga, quer que vente
bem mansa a brisa e impeça que o sol quente
lhe abrase o corpo como à lagartixa.
Faz parte duma ANINHA, "Associação"
de alcance "Nacional", "de Interessadas"
não mais que "em Namorar", fora o tesão,
os "Homens Adoráveis". São tão dadas
as membras do tal clube, que só vão
ao baile acompanhadas de outras fadas.
SONETO 915 USUAL
Na bolsa ela traz tudo: seu batom,
espelho, pente e coisas acessórias,
além do tal caderno de memórias,
ou seja, seu diário, um livro com
folhas azuis e capa em tom marrom,
ao lado das apostas ilusórias
no bicho, e, pra que o azar inda piore-as,
manchadas de recheio de bombom.
Cartão de telefone, banco, loja.
Dinheiro, documentos, comprimidos,
de que mulher nenhuma se despoja.
No fundo estão papéis meio escondidos,
contendo o que às amigas tanto enoja:
poemas, dos pornôs mais desabridos.
Glauco Mattoso é poeta, ficcionista, chronista e columnista em diversas
midias. Pseudonymo de Pedro José Ferreira da Silva (paulistano de 1951),
o nome artistico trocadilha com "glaucomatoso" (portador de glaucoma,
doença congenita que lhe acarretou perda progressiva da visão, até a
cegueira total em 1995), alem de alludir a Gregorio de Mattos, de quem é
herdeiro na satira politica e na critica de costumes.
Apoz cursar bibliotheconomia (na Eschola de Sociologia e Politica de São
Paulo, bacharelando-se em 1972) e lettras vernaculas (na USP, sem
concluir), ainda nos annos 1970 participou, entre os chamados "poetas
marginaes", da resistencia cultural à dictadura militar, epocha em que,
residindo temporariamente no Rio, editou o fanzine poetico-pamphletario
"Jornal Dobrabil" (trocadilho com o "Jornal do Brasil" e com o formato
dobravel do folheto satirico) e começou a collaborar em diversos organs
da imprensa alternativa, como "Lampeão" (tabloide gay) e "Pasquim"
(tabloide humoristico), alem de periodicos litterarios como o
"Supplemento da Tribuna" e as revistas "Escripta", "Ineditos" e
"Ficção".
Durante a decada de 1980 e o inicio dos annos 1990 continuou militando
no periodismo contracultural, desde a HQ (gibis "Chiclette com Banana",
"Tralha", "Mil Perigos" e outros, mas não deve ser confundido com o
cartunista Glauco Villas Boas) até a musica (revistas "Somtrez", "Top
Rock"), alem de collaborar na grande imprensa (critica litteraria no
"Jornal da Tarde", ensaios na "Status" e na "Around"), e publicou varios
volumes de poesia e prosa.
Na decada de 1990, com a perda da visão, abandonou a creação de cunho
graphico (poesia concreta, quadrinhos) para dedicar-se à lettra de
musica e à producção phonographica, associado ao sello independente
Rotten Records.
Abaixo algumas das principais obras do autor dentre as centenas já publicadas até aqui:
"Apocrypho Apocalypse" (poesia) 1975
"Maus modos do verbo" (poesia) 1976
*"Jornal Dobrabil: 1977/1981" (poesia e prosa) 1981, reeditado em 2001
"O que é poesia marginal" (ensaio) 1981
"Revista Dedo Mingo" (poesia e prosa) 1982
"Memorias de um pueteiro" (poesia) 1982
"Linguas na pappa" (poesia) 1982
"O que é tortura" (ensaio) 1984, reeditado em 1986
Outros Olhares( a Crítica)
Mattoso retoma a antropofagia do ponto em que Oswald parou. E, ainda, acrescenta um dado novo. Aquele nos explica: "Já que a nossa cultura (individual & coletiva) seria uma devoração alheia, bem que podia haver uma nova devoração dos detritos ou dejetos dessa digestão. Uma reciclagem ou recuperação daquilo que já foi consumido e assimilado". O dado novo: devorar os resíduos, aquilo que ficou à margem, em outras palavras, aquilo que a tradição moderna brasileira não aproveitou. Proposta que Mattoso, singularmente, chamou de coprofagia.
FRANKLIN ALVES
“Glauco Mattoso é um herdeiro da poesia fescenina (a lírica licenciosa da Antiguidade latina), das cantigas de escárnio e maldizer (que remontam ao trovadorismo português), da poesia erótica do barroco brasileiro Gregório de Matos e do sonetista português du Bocage (1765-1805); transforma perversão, pornografia e auto-humilhação msoquista (leia-se se “Soneto de Natal”) em denúncia anárquica da “merda comunitária cosmopolita” — como no “Manifesto Coprofágico”, cuja epígrafe é uma “licença poética” com o nome do poeta espanhol Federico García Lorca...”
Manuel da Costa Pinto
Biografia extraída do site oficial do escritor.
Assinar:
Postar comentários
(Atom)
Postagens mais visitadas
-
A TORRE DE VIGIA E O CÉU AZUL DOS ALBATROZES Por Rossini Corrêa Fernando Atallaia é um artista multimídia-jornalista, compositor, poeta, ...
-
A nudez despudorada POR FERNANDO ATALLAIA DIRETO DA REDA ÇÃ O Um grupo de mulheres vem tirando a roupa nas noites de São Luís ...
-
Entre Ela e Aquelas Vem a desordem e a tortura Afunilamento da loucura Os totens malditos e sagrados Tudo ao temp...
-
Os mais de 230 mil ribamarenses distribuídos nas áreas Limítrofes, Sede, Vilas e Zona Rural caem no debate das eleições a 19 meses do pleito...
-
Conhecido na capital maranhense como o ‘Rei das Putas’, Elbo Bayma agenciava modelos, patricinhas e congêneres POR FERNANDO ATALLAIA ...
-
Estratégia do grupo é esvaziar o campo oposicionista a 17 meses do pleito POR FERNANDO ATALLAIA EDITOR DE BALNEÁRIA DA AGÊNCIA BALUARTE ...
-
SÃO JOSÉ DE RIBAMAR ‘PEGANDO FOGO’ Ex-comandante da Guarda Municipal deve concorrer à vaga na Câmara POR FERNANDO ATALLAIA EDITOR DE E...
-
Ex-presidente do SINDGUARDA, GCM foi fundamental para o recuo da intenção POR FERNANDO ATALLAIA EDITOR DE BALNEÁRIA DA AGÊNCIA BALUARTE ...
-
Encerramento do Agosto Dourado reúne mães e profissionais da Saúde em São José de Ribamar Para marcar o encerramento das ações em comemor...
-
Enfermos estão abandonados à própria sorte no Socorrão II Esposo da secretária de Saúde é vereador na capital maranhense Prefeito ...
Pesquisar em ANB
Nº de visitas
Central de Atendimento
FAÇA PARTE DA EQUIPE DA AGÊNCIA DE NOTÍCIAS BALUARTE
Denúncias, Sugestões, Pautas e Reclamações: agencia.baluarte@hotmail.com
atallaia.baluarte@hotmail.com
Sua participação é imprescindível!
Denúncias, Sugestões, Pautas e Reclamações: agencia.baluarte@hotmail.com
atallaia.baluarte@hotmail.com
Sua participação é imprescindível!
Gil, Pra esse eu digo sim. O melhor prefeito que são josé de Ribamar já teve!!
ResponderExcluirLina cruzeiro
Lina que pena procure è conhecer o nosso municipio os milhões que nele entra .Enquanto o povo de São Luis levam nossas riquezas que seria para os ribamarenses os meradores ficam olhando de braços cruzados vendo o navio passar.
ResponderExcluirLuz Maria centro